Cinema, cem anos de juventude
9 ensaios em torno de um tema: Indivíduo, Grupo, Comunidade
Lígia Calapez e Sofia Vilarigues | Jornalistas
Pequenos filmes-ensaio que partem de histórias reais, relações interpessoais, a realidade da exclusão, uma presença quase constante da natureza, interação com outras culturas. Foi grande a diversidade dos filmes-ensaio apresentados, dia 11 de junho, na Cinemateca Portuguesa, pelos alunos de escolas portuguesas participantes.
Este momento insere-se no programa pedagógico Cinema, cem anos de juventude, que integra O mundo à nossa volta, programa atualmente coordenado por Os Filhos de Lumière. Um projeto experimental de iniciação ao cinema.
O projeto, como vem referido na apresentação da iniciativa, “reúne atualmente 15 países, da Europa e do mundo, trabalha uma metodologia que alia a análise de filmes à prática de fazer”. Ao longo do ano letivo, “cineastas, professores, alunos em todos os países participantes exploram uma questão de cinema, a partir das mesmas regras de jogo”.
No último período de cada ano, os alunos realizam um filme-ensaio coletivo, subordinado a um tema que, este ano, foi Indivíduo, Grupo, Comunidade.
Filmes-ensaio
6+14=20
Um filme documental, focado no “pequeno mundo maravilha” de crianças do pré-escolar, que “brincam, desenham, constroem, conversam, cantam”, foi o trabalho apresentado por alunos da Escola Básica Manuel Ferreira Patrício, Évora.
Com um primeiro plano original – a filmagem de bichinhos da seda, numa caixa (“de certa forma, os bichos são bem barulhentos, bem mexidos, e por isso dá para representar as crianças”) - o breve documentário reflete “uma experiência pedagógica muito interessante”, mostrando, como foi assinalado no debate, “que há outras formas de educar as crianças, olhando para a natureza, olhando para as expressões artísticas, para a palavra, com liberdade e organização”.
Uma preocupação dos jovens foi - “ao mesmo tempo que apanhávamos o grupo, mostrar as diferenças de grupo, de indivíduos”.
Escolho o Toby
“A única coisa que a gente decidiu mesmo de início foi a parte do Toby”, contaram os alunos da EB 2,3 Marquesa de Alorna, Lisboa, responsáveis pelo filme. O Toby é o animal de estimação do Dilan, e é um réptil, algo pouco usual, como destacaram os alunos no público. E porquê esta escolha? “Nós escolhemos o Toby porque eu pedia todo o tempo para o trazer para as gravações. E quando nós fomos fazer o filme, eles deixaram-me pôr o Toby. E como sempre escolhi o Toby, e não as outras coisas, ficou Escolho o Toby”, conta o Dilan.
O filme retrata a relação próxima do Dilan com o Toby, “um amigo especial”, a rejeição do Dilan por um grupo, “os dissabores” dessa opção pelo Toby, e a aceitação por outro grupo, “o seu grupo de amigos”.
Um filme que reflete de uma forma especial a relação com os animais, com um final feliz.
O Homem do Saco
“O Zé quer jogar à bola com um grupo de meninos que o rejeitam. Depois ele vai para um lago onde está outro grupo de crianças num piquenique. Beatriz não gosta da conversa do seu grupo” sobre o Homem do Saco, que rapta crianças, “afasta-se e vai ter com o Zé que está sozinho. Ficam amigos”. Quando passa um homem com um saco, enquanto os outros fogem, a Beatriz e o Zé apenas constatam a sua presença, sem medo.
Este o resumo de um filme da Escola Básica Santana de Gambas, Mértola, em que as lendas, os indivíduos e a comunidade, estiveram no centro do posterior debate. “Porque, na verdade, a comunidade é feita dessas coisas, não é? Por exemplo, das lendas”, foi um dos comentários. “O que eu acho interessante é a rejeição do miúdo pelo grupo e ao mesmo tempo o homem do saco também é um homem rejeitado. Há essas duas coisas e se pensarmos quando rejeitamos uma pessoa o que é que ela pode vir a tornar-se. Quando ela é abandonada pela sociedade pode-se tornar uma lenda”, foi outra das observações. “Porque hoje em dia quisemos racionalizar demasiadas coisas e dizer não, as lendas, isso não faz sentido nenhum. Mas elas tinham um sentido, não era de excluir propriamente, era também de dar uma ferramenta para as pessoas terem cuidado com determinadas situações”, foi outro alerta do público. “Eu sobretudo acho que as lendas, os contos populares servem para as crianças lidarem com sentimentos. O homem do saco é o medo, lidar com o medo antes de sentir medo, antes de passar por uma experiência de medo”, foi sublinhado quase na conclusão do debate.
Laços
A cena inicial testemunha do trabalho coletivo de construção de um painel de Camões. Obra comum do grupo que será protagonista da história desenvolvida pelos alunos da Escola B/S Alfredo da Silva, Albarraque/Sintra.
O objetivo inicial foi mostrar “o casal que formou o grupo, que criou os laços de movimento, e conseguiu depois desfazer esse mesmo grupo”, com o seu afastamento. Na filmagem e montagem, os alunos foram, depois, buscar elementos “para formar essa forma visual de entender o filme”. Por exemplo, “no final do filme o laço caiu do cabelo da menina, ou seja, os laços desfizeram-se porque o casal separou-se”.
Uma história que tinha algo a ver com a própria vivência do grupo que criou o filme. E “usarmos uma experiência que nós estávamos justamente a viver, ajudou muito”.
Karma
“Palavras são como drogas, pense bem antes de usá-las”. As palavras que no filme despoletam a ação são as ditas num jogo do telefone estragado, de uma jovem a outra. Nós não as ouvimos, mas não é preciso. Leva a jovem a afastar-se do grupo, que está na floresta, sem rede, claramente ofendida. A outra é instada a ir desculpar-se e vai, mas cai da bicicleta, sendo ajudada no fim pela jovem ofendida. “Karma”.
Um filme, da Escola Secundária Miguel Torga, Monte Abraão/Sintra, com forte presença da natureza. Com relevância de pormenores. Como o do dente-de-leão. No “plano em que a menina que saiu estava com um dente-de-leão na mão, em que ela começa a soprar, isso seria alguma forma de representar que ela estava a superar?”, questionou-se no debate. “Era num momento que ela estava triste. Só que quando ela estava sentada ali em cima do muro, o sofrimento basicamente já tinha ido embora. E acredito eu que foi quando as pétalas estão a voar, também voou o sentimento todo de tristeza”. “É uma beleza que se instala no filme com esse plano”, foi o comentário.
Destinos
“Esta história é uma história real do nosso colega Henrique, que não nasceu em Portugal e esteve cá duas vezes e não foi bem recebido”.
Um testemunho que levou alunos da Escola Secundária de Serpa a construir um pequeno filme em que “todos os planos foram escolhidos para representar a tristeza”. Por isso, tanto a paisagem como o silêncio são utilizados “para mostrar o que vai na cabeça de uma pessoa que não se sente bem num sítio”.
Uma filme-história que acaba bem. No início o jovem brasileiro é rejeitado, mas, no final, “há uma solidariedade, juntam-se todos para o salvar”. Agora “está num grupo, já tem amigos, já se sente incluído”.
E que foi um aprendizado: “quando o Henrique nos contou a história dele, fez-nos perceber mais um pouco do que é ser imigrante”.
Kabbadi
Kabbadi é o nome de um jogo que, no trabalho realizado pelos alunos da Escola Secundária Marquês de Pombal, Lisboa, configura o primeiro momento de interação de grupo. Que irá de algum modo ser perturbada pelo autoafastamento de uma menina - a personagem principal cujo percurso iremos, depois, seguir, entre a fuga, aparentemente sem destino, representada pelo túnel por onde irá enveredar, e o integrar de outro grupo (um clube de fotografia).
No fim, o reencontro de todos, unindo numa grande festa, não só os protagonistas da história, mas toda a equipa. Pois, como disseram os estudantes envolvidos neste projeto, “nós queríamos demonstrar que a comunidade não é só o filme, mas sim toda a equipa que participa no filme”.
Eu Acho que Fico
“Um grupo de amigos combina um piquenique, mas com o decorrer da tarde deixa de ser o grupo de sempre, porque há quem escolha ficar”, quando o grupo parte. Quem fica é uma rapariga que tentou aproximar-se doutra, a Laura, de quem se aproveitavam, que desvalorizavam. Uma aproximação sem sucesso.
“Esta narrativa é baseada e foi adaptada a partir de uma situação que eu experienciei”, contou uma das jovens, a que ficou.
Esta dinâmica do filme da Escola Secundária de Camões, Lisboa, foi abordada e particularmente valorizada no debate. “Dá a impressão de que a Laura aceita tudo. Vai fazendo coisas para eles, para se sentir aceite por eles. Mas há uma pessoa que está atenta. Eu acho isso muito bonito”. “Estava aqui a pensar, logo no início, vocês apresentam o intervalo de idades dos participantes, de todos os que fizeram este belíssimo filme, que é entre os 15 e os 18, que é uma altura em que me parece que há este questionamento, sobre o nosso lugar, o nosso lugar no mundo, o nosso lugar connosco. E o que vos queria dizer é que, dos meus 54 anos, consigo ter este mesmo questionamento, ou seja, como é que a cada dia, a cada momento, nos relacionamos com o outro, se fazemos do outro um objeto de satisfação das nossas necessidades, ou se não, ou se olhamos para o outro como alguém parte de nós. Porque tudo, na verdade, todas as circunstâncias de encontro com o espaço ou com o outro são de facto oportunidades de crescimento. Isso acontece na adolescência e acontece na nossa idade de adulto”.
O Intruso
O trabalho apresentado pelos alunos da Escola Secundária Matias Aires, Agualva e Mira-Sintra, Sintra, é composto de vários momentos distintos.
Uma visita coletiva ao museu das marionetas, que de algum modo simboliza a dinâmica de grupo. Ou uma sucessão de cenas que decorrem numa cozinha (“queríamos mostrar o nosso curso e a forma que nós deveríamos estar dentro da cozinha”). Ou noutros espaços frequentados pelos protagonistas, como um parque e um ginásio.
Como trama de fundo, uma história de amores e desamores juvenis. A história de um casal e de uma relação posta em causa pela presença de um terceiro elemento – “o intruso”.
Texto original publicado no Escola/Informação Digital n.º 46 | junho/julho 2025