Ciência com Direitos para os Desafios Globais
SPGL assinala a Noite Europeia dos Investigadores 2025
A 26 de setembro celebra-se a Noite Europeia dos Investigadores (NEI), este ano sob o mote “Ciência para os Desafios Globais”. Em Portugal, a iniciativa decorre em vários pontos do país, incluindo Lisboa, aproximando cidadãos e comunidade científica. O tema deste ano é particularmente oportuno, num tempo marcado por alterações climáticas, desigualdades, vários conflitos armados, desinformação e pelo avanço de regimes autocráticos. A ciência e os cientistas são essenciais para responder a estes desafios, produzindo conhecimento e promovendo sociedades mais informadas, democráticas e inclusivas. É por isso que a NEI assume grande relevância ao procurar “sensibilizar os mais jovens para a relevância da investigação e inovação na Europa com vista a um futuro mais sustentável e inclusivo”.
Os investigadores e os demais trabalhadores científicos que desenvolvem a sua atividade em Portugal têm dado, nas últimas décadas, um contributo decisivo para este desígnio e para o desenvolvimento económico e social do nosso país. No entanto, essa dedicação tem sido explorada através de vínculos frágeis e condições de trabalho pouco dignas. Segundo a OECD, 90 % dos vínculos na ciência que foram estabelecidos após 2017 são precários e o próprio Ministro da Educação, Ciência e Inovação (MECI) reconheceu, em julho deste ano, que a precariedade atingiu “um ponto inaceitável”. Num contexto em que não há estabilidade nem motivação, como tem sido alertado, os mais jovens partem. Os dados da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) mostram a gravidade da situação: de 4 582 contratos ao abrigo do “emprego científico”, apenas 1 442 permanecem em execução e mais de 3 140 já cessaram, existindo embora investigadores com novos contratos precários depois de contratos anteriores que cessaram. Daqui decorre que as vagas da 1.ª edição do programa FCT-Tenure cobrem apenas 1/3 do universo precarizado, ficando o resto sem qualquer solução.
Ao longo da última década foram criados vários instrumentos que pretendiam responder a este problema, mas têm-se revelado insuficientes. O DL 57/2016, de 29 de agosto, com as alterações da Lei 57/2017 (DL57), estabeleceu, para as instituições de regime de direito público, contratos iniciais de três anos, renováveis anualmente até seis, devendo ser aberto concurso para lugar de carreira na mesma área científica até meio do sexto ano. Na prática, em muitas instituições de ensino superior (IES) esses concursos nunca foram abertos, noutros casos foram lançados em áreas diferentes ou os investigadores nem sequer foram notificados, sendo privados do direito de concorrer. A situação é ainda mais grave nas instituições de direito privado, como as universidades fundação e as Instituições Privadas Sem Fins Lucrativos (IPFSL), criadas ao longo dos anos pelas próprias IES (a maioria de natureza pública) com o suposto objetivo de contornar restrições orçamentais à contratação. Estas IPFSL tornaram-se verdadeiros offshores de precariedade, empregando o grosso dos investigadores fora das carreiras e sem garantias de direitos laborais equivalentes.
Em março de 2025 foi aprovado o novo Estatuto da Carreira de Investigação Científica (ECIC), Lei 55/2025, apresentado pelo governo PSD-CDS como instrumento central para combater a precariedade. O resultado está longe desse objetivo. O diploma prevê apenas a manutenção dos contratos ao abrigo do DL57 que terminem em 2025 até à realização dos concursos, norma insuficiente por excluir todos os que perderam contratos antes da entrada em vigor da lei. Pior, foi rejeitado o regime transitório de integração na carreira, proposto pela FENPROF, que permitiria resolver estruturalmente a situação de milhares de trabalhadores científicos. O chumbo dessa proposta pelo governo e pela maioria parlamentar demonstra a falta de vontade política em enfrentar seriamente a precariedade que há muito mina o sistema científico nacional.
Importa ainda não esquecer o programa FCT-Tenure (1.ª edição lançada em dezembro de 2023) à qual IES e de ciência candidataram propostas para cerca de 2 211 posições, mas apenas 1 104 foram financiadas. Este desfasamento revela que as próprias instituições reconheceram a necessidade de regularizar muitos mais investigadores. Os concursos para estas contratações deveriam estar concluídos até julho de 2025, mas em muitos locais isso não aconteceu. Perante este incumprimento, a FCT viu-se obrigada a aceitar os pedidos de prorrogação apresentados pelas instituições, de modo a não penalizar ainda mais os investigadores, prolongando os processos até ao final de 2025 e, com isso, a sua situação precária e frágil. Entretanto, a prometida e urgente 2.ª edição do programa, com nítida necessidade de reforço orçamental para contratar permanentemente um número de investigadores adequado à dimensão do sistema científico e tecnológico nacional, continua com várias incertezas, deixando milhares de trabalhadores científicos em suspenso.
Na raiz deste problema está o facto de muitas instituições, em vez de combaterem a precariedade, se terem acostumado a conviver com ela. Esta acomodação foi facilitada por um sistema de financiamento que assenta quase exclusivamente em fundos competitivos, temporários e imprevisíveis, sem uma base estrutural estável. E a que existe é também muito insuficiente: concursos como o CEEC (Concurso de Estímulo ao Emprego Científico) da FCT deixam de fora mais de 90 % dos doutorados, e nos últimos anos a taxa de sucesso em projetos da FCT raramente ultrapassou os 10 % (em 2025 foi de apenas 8,5 %). O resultado é o subfinanciamento crónico da ciência e do ensino superior, sucessivamente denunciado por sindicatos - incluindo o SPGL e a FENPROF - e pela comunidade científica, confirmado por estudos e relatórios parlamentares.
É certo que a despesa total em I&D em Portugal tem vindo a crescer, mas ainda se encontra muito longe da meta europeia de 3 %. Mais grave ainda, esse aumento resultou sobretudo do investimento privado, mantendo-se o financiamento público residual. Torna-se, por isso, urgente inscrever no Orçamento de Estado um financiamento que seja verdadeira função do PIB, de forma estável e plurianual, reforçando o financiamento basal das instituições científicas. Só assim será possível ultrapassar a falta de ambição e de visão estratégica que tem deixado a ciência vulnerável a ciclos políticos curtos, à dependência de projetos e à ausência de planeamento de médio e longo prazo.
A isto soma-se a incerteza em torno da reestruturação do MECI, anunciada em agosto de 2025, que prevê a extinção da FCT, fundindo-a com a Agência Nacional de Inovação (ANI) para criar a nova Agência para a Investigação e Inovação (AI²). A reforma abrange ainda outros organismos e estruturas, mas a extinção da FCT é particularmente grave, dado o seu papel central no financiamento e na coordenação da ciência em Portugal. Esta opção foi tomada sem qualquer debate público nem auscultação da comunidade científica e contraria os resultados do estudo encomendado pela própria FCT, em 2023, que em nenhum momento apontava para a sua dissolução. Não surpreende, por isso, que tenha gerado forte apreensão entre investigadores, dirigentes institucionais, reitores e partidos políticos de diferentes quadrantes. Trata-se de um retrocesso grave que fragiliza sobretudo a investigação fundamental, que exige estabilidade, autonomia e visão de longo prazo, e compromete a produção científica nacional e a capacidade do país enfrentar os grandes desafios globais. O anúncio, a 24 de setembro, de que a AI² assumirá a forma de sociedade anónima veio agravar estas preocupações, pois significa transformar uma instituição pública numa entidade de direito privado, com riscos sérios para a missão pública da ciência e o escrutínio democrático da sua gestão.
Por isso, declarações como a do ministro Fernando Alexandre, segundo a qual os cientistas “têm a obrigação de devolver à sociedade o investimento que é feito neles”, soam injustas. Os investigadores já devolveram mais do que receberam, seja através do conhecimento produzido, da formação de gerações de estudantes, da internacionalização da ciência portuguesa ou da sua contribuição para o desenvolvimento económico, social e cultural. O que falta é o reconhecimento político e institucional, que continua a negar-lhes estabilidade, direitos laborais e acesso a uma carreira digna.
A NEI é, por isso, não apenas um momento de celebração e de aproximação da ciência aos cidadãos, mas também de denúncia e exigência: do fim da precariedade, da criação de um regime transitório de integração na carreira, da execução célere e reforçada do programa FCT-Tenure, do cumprimento da meta de 3 % do PIB para a ciência, e de um verdadeiro financiamento estrutural que assegure a sustentabilidade do sistema científico e não dependa apenas de fundos competitivos, e a democratização do sistema científico e de ensino superior.
O SPGL, saúda todos os investigadores e trabalhadores científicos e reitera o compromisso de continuar ao seu lado na luta por uma carreira digna, pela valorização da ciência como bem público e por uma sociedade mais democrática, justa e inclusiva.
O Departamento do Ensino Superior e Investigação do SPGL