Artigo:Chile: o fim do legado de Pinochet

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Chile: o fim do legado de Pinochet

Em 25 de outubro, o povo chileno decidiu iniciar uma nova era livre da hipoteca da ditadura militar que derrubou o governo do Presidente Salvador Allende: a constituição de Pinochet de 1980 foi rejeitada. Esta constituição, influenciada pelas doutrinas neoliberais de Milton Friedman e dos seus ‘Chicago boys’, caracterizava-se pela privatização da saúde, segurança social e educação, bem como por ‘legitimar’ a concentração de poderes que fazia do estado de exceção regra. Uma maioria esmagadora do povo chileno (78%) votou, num referendo que o Presidente da República Sebastian Piñera foi obrigado a convocar em 2019, a favor de uma nova constituição. Além disto, 79% escolheram o método mais democrático para a sua elaboração, a eleição de uma Assembleia Constituinte com 155 deputados, rejeitando, em contrapartida, a proposta que previa uma convenção constituinte de 172 membros, em que apenas 86 eram eleitos, enquanto a outra metade integrava parlamentares atualmente em funções.

Apesar da constituição de Pinochet ter registado alterações – de que se destacou a de 2005 do governo do Presidente socialista Ricardo Lagos, que aboliu a norma sobre a nomeação de senadores em representação do exército golpista – a privatização dos serviços públicos geradora de uma enorme iniquidade social manteve-se intocada. A exigência de justiça social é, a partir agora, o maior desafio que se coloca aos deputados constituintes. No entanto, logo se fizeram ouvir os receios de alguns partidários da velha ordem. Assim, para a constitucionalista Constanza Hube, professora de direito na Universidade Católica, a constituição rejeitada até reconhece “o direito a receber uma justa retribuição pelo trabalho, o direito à proteção da saúde, o direito à educação, à segurança social”, pelo que – conclui – “temos que ser responsáveis e evitar grandes ofertas de direitos sociais para não continuar a gerar expectativas exageradas” (‘El País’, 27. 10. 2020).

Se isto é verdade não se percebe por que é que o povo chileno votou uma nova constituição. De facto, até uma constituição neoliberal de uma ditadura pode reconhecer o ‘direito a uma justa retribuição’ quando, ao mesmo tempo, ilegaliza os sindicatos, o direito saúde e à educação quando estes serviços são prestados por privados, gerando enormes desigualdades da acesso, e o direito à segurança social quando esta assenta também num sistema de seguros privados em que os que podem pagar mais são beneficiados em detrimento dos menos favorecidos. Neste contexto, os direitos sociais são meramente formais, pois não existem serviços públicos, um serviço nacional de saúde, ensino público gratuito, um sistema público de aposentações, que os garanta a todos os cidadãos independentemente do seu rendimento, como é reconhecido pelos artigos 63º, 64º e 74º da Constituição da República Portuguesa. Corrigir as enormes desigualdades sociais, o legado da constituição de Pinochet, através de medidas, efetivas, concretas deverá ser a aposta da nova Constituição. As manifestações de 2019 que forçaram Piñeda, um Presidente da República de direita, a convocar o referendo apontavam nesse sentido. E foi provavelmente para isso que a esmagadora maioria do povo soberano do Chile mandatou em 25 de outubro de 2020 os deputados constituintes.

Joaquim Jorge Veiguinha