Artigo:Caça às bruxas

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Caça às bruxas


No Público de sábado, dia 28 de maio, surge a coluna do provedor de José Barata Feyo, onde se refere que “quando o jornalismo, na dúvida, ataca o “réu”, está a fazer um julgamento sumário”.
Foi esta a minha escolha para notícia do dia, por me identificar com o tema e pensar que não devemos deixar que se volte efectivamente a um tempo de “caça às bruxas”.
Se não queremos ver repetir-se este tipo de notícias é preciso ganhar consciência desta realidade e pensar um pouco sobre ela de forma mais contundente.
Como escreve António Pereira: “Há pelo menos seis municípios acusados pela associação que vela pelo bom tratamento dos ucranianos em Portugal de terem utilizado grupos pró-Kremlin no apoio aos que procuram em Portugal refúgio e auxílio. São esses municípios (pelo menos) Aveiro, Gondomar, Portimão, Porto, Lisboa e Setúbal. No entanto, em vários artigos que li, nomeadamente em alguns editoriais do senhor director do PÚBLICO, praticamente só vejo referenciado um desses municípios, o de Setúbal.”
Quais as razões que presidiram a esta escolha? — interroga o leitor.
José Manuel Barata Feyo solicitou junto do Público informação sobre as razões da escolha, tendo este jornal confirmado as suas opções editoriais justificando-as. Resta o modo como este caso foi tratado, no plano jornalístico, pelo conjunto da comunicação social.
 José Manuel Barata Feyo acredita que todos os jornalistas que noticiaram o assunto respeitaram o princípio do contraditório e tentaram, em vão, ouvir Igor Khashin e a sua mulher, Júlia Khashina. Não é possível obrigar alguém a falar e o silêncio de uma das partes não pode ser impeditivo da publicação da notícia. Mas o facto é que a opinião pública só pôde conhecer a defesa do casal russo depois da muito necessária entrevista do jornalista Francisco Alves Rito, divulgada na edição do PÚBLICO de 13 de Maio de 2022.
Vejamos agora os indícios em que se basearam as notícias a denunciar o “mau comportamento” do casal russo. O primeiro elemento foi o facto de ele ser russo: “Eu sou russo, sim, sou russo. Se isso é crime, não sei.” “Os exilados políticos e os emigrantes durante a ditadura salazarista sabem que a nacionalidade não é sinónimo de cumplicidade com o regime vigente no país de origem. Antes pelo contrário. A CIMADE (Comité Inter-Mouvements Auprès Des Évacués), uma organização ligada à Igreja Protestante, que apoiou os exilados e os emigrantes portugueses em geral, nasceu em 1939, durante a Segunda Guerra Mundial. O seu propósito era acolher todos os refugiados, inclusive os cidadãos da Alemanha, com quem a França estava em guerra, que fugiam do regime nazi. Como muitos portugueses fugiram da ditadura. Como muitos russos fogem agora do regime de Putin. Rotular um homem pela sua nacionalidade é uma reacção chauvinista e primária. A solidariedade não tem pátria, nem pode ser encurralada atrás de fronteiras. “
Uma outra acusação foram os contactos do casal russo com a sua embaixada e diz o autor da coluna “Valha-nos o bom senso! Então os emigrantes portugueses por essa Europa fora, que quase sempre saíam do país a “salto”, não contactavam as embaixadas de Portugal onde viviam e trabalhavam? Como é que podiam obter um passaporte que lhes permitisse viajar, ainda que só de regresso a Portugal? Ou mandar ir a mulher e os filhos? Ou renovar um bilhete de identidade ou uma carta de condução já caducados? Eram por isso e outro tanto apoiantes de Salazar ou informadores da PIDE?
 E continua o autor “Igor Khashin e a mulher recolhiam os dados pessoais dos ucranianos que chegavam a Setúbal e outra informação sobre o agregado familiar. Mas não era isso necessário para preencher os formulários e instruir os processos individuais, independentemente da nacionalidade dos estrangeiros? Depois, há as conversas entre os Khashin e os ucranianos. Elas seriam suspeitas. Suspeito seria que essas conversas não existissem. Quando um refugiado ou emigrante “cai” sozinho num país onde não tem qualquer contacto, de que tudo ignora, nomeadamente a língua, a sua primeira reacção, humana reacção, é desabafar e contar as suas experiências e angústias. “As pessoas falavam de tudo e de mais alguma coisa”, confessa Igor Khashin. Ao que parece, ele e a mulher também são culpados de ter falado com os ucranianos… Não sei se os Khashin são espiões ao serviço da Rússia ou não. Ninguém sabe, ao certo. E se não forem? No ambiente de caça às bruxas que se gerou na sequência da guerra na Ucrânia, é indispensável separar o militantismo do jornalismo e a imprensa responsável da “Maria-vai-com-as-outras”.
 José Barata Feyo conclui da seguinte forma: ”Segundo a velha máxima jornalística, notícia não é um cão que morde um homem, é um homem que morde um cão. Ainda assim, para que haja notícia, é preciso que o homem tenha mordido o cão, de facto.”


Ana Cristina Gouveia