Atira-te ao dinheiro
É pouco provável que alguém conheça a cidade de Sioux Falls no estado do Dakota do Sul nos USA. Mas foi precisamente nesta localidade que um banco hipotecário excogitou um concurso para que 10 professores pudessem recolher um financiamento para as suas aulas. Esta louvável iniciativa intitulou-se ‘Dash for Cash’ que se poderia traduzir por “Atirem-se ao Dinheiro”. Sabemos que na terra do dólar norte-americano o dinheiro é tudo e as pessoas não são nada ou quase nada, apesar das profissões de fé sobre a defesa dos direitos humanos do seu atual pouco convincente Presidente. Além disso, os bancos nunca concedem fundos a terceiros a título gratuito. E as linhas que se seguirão – que me desculpe o leitor por deixá-lo na expectativa nesta época natalícia em que as surpresas estão confinadas aos presentes que se oferecem às crianças – ilustrá-lo-ão.
O cenário do concurso (ou da prova, se quiserem) foi o intervalo da partida de hóquei no gelo da equipa da cidade, a Sioux Falls Stampede. Provavelmente para evitar o frio e a humidade do gelo, uma salutar preocupação dos organizadores em tempo de Covid 19, foi colocado um tapete no recinto desportivo, onde a prestimosa instituição bancária lançou 5 000 dólares USA em notas de um dólar. Dado o tiro de partida, os 10 docentes, equipados a rigor com capacetes daquele desporto violento, começaram a gatinhar na procura do El Dorado com a edificante ambição que move montanhas de conseguirem apoderar-se do maior número de notas de dólar USA possível. Como a fartura era muita e a causa era das melhores – tudo em prol dos alunos legitima todos os sacrifícios e suprime temporariamente todas as reservas da decência e da dignidade –, cada concorrente socorreu-se de todos os recursos de que dispunha para conseguir superar os outros na demanda do Santo Gral: bolsos, decotes, mangas e até um gorro de lã que um concorrente menos escrupuloso, mas ainda dentro das regras do ‘fair play’ desportivo, fez, qual prestidigitador, aparecer não se sabe donde, o que provavelmente lhe permitiu acumular mais dólares do que os seus adversários e, assim, ganhar, quiçá, o prestimoso título de predestinado calvinista: o mais rico será salvo.
Alguns compararam esta prova à série coreana de televisão O Jogo da Lula, onde as personagens arriscam a vida e morrem para terem acesso a uma pequena fortuna. No entanto, é muito mais do que isso. Trata-se de uma versão sinistramente grotesca do modelo da sociedade de mercado neoliberal que algumas boas almas julgavam que entraria definitivamente em crise com esta pandemia: pelo contrário, a competição de todos contra todos que alguns membros da equipa educativa do ministério da Educação do Governo PSD/PP consideravam condição necessária (e até suficiente) para o desenvolvimento do espírito de iniciativa e o desabrochar das potencialidades criativas de cada um apenas, ao que tudo indica, esteve temporariamente suspensa. O ‘dash for cash’ parece ter readquirido o seu império sobre as mentes e os corpos. Pelo menos, em terras do Tio Sam, na cidade de Sioux Falls. Uma coisa é, porém, certa: esta iniciativa pode ser tema de uma futura ação de formação pelas suas potencialidades de desenvolvimento das capacidades psicomotoras dos professores do ensino básico e secundário.
Triste epitáfio para o centenário do nascimento do grande pedagogo brasileiro Paulo Freire que o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto em colaboração com outros parceiros em boa hora comemorou.
Joaquim Jorge Veiguinha