Assim vai a transição verde…
A apologia dos veículos elétricos tem sido propagandeada aos quatro ventos como a solução milagrosa para resolver o problema da poluição gerada pelo clássico motor de combustão interna que desde os anos 20 do século passado esteve na origem da ‘revolução’ dos transportes motorizados movidos pelas energias fósseis. Finalmente, dizem os seus apologistas, vamos dar o primeiro passo de uma nova revolução, a chamada ‘transição verde’. Europa, Estados Unidos e China registam um crescimento significativo deste novo tipo de veículos elétricos acionado pela energia do futuro, num admirável mundo novo ‘pollution free’, dizem eles.
No entanto, tal não passa de uma manobra de propaganda, pois os novos automóveis da pretensa transição verde irão criar formas de inquinamento ambiental que pouparão, ao que tudo indica, apenas os países mais desenvolvidos, do clássico ‘Ocidente não acidental’, a que se juntou também a China, em que foram vendidos 1,8 milhões de veículos elétricos em 2020, o valor mais elevado, tendo em conta a dimensão estratosférica dos ‘novos ricos’ do mercado interno chinês que, esquecidos o catastrófico ‘Grande Salto em Frente’ e os desmandos ‘Revolução Cultural’, se rendeu incondicionalmente ao neoliberalismo na economia e às maravilhas consumistas do ‘Ocidente não acidental’, um lugar político, historicamente determinado, e não um mero ‘locus’ geográfico na cartografia mundial.
As baterias do automóvel «revolucionário» que desencadearam uma procura frenética da matéria-prima que está na origem da sua fabricação, o lítio, não apenas tem custos ambientais diretos muito elevados nas zonas onde é extraído – Portugal, que continua a ser, cultural e economicamente, um país do terceiro mundo no contexto da União Europeia, está, ao que tudo indica, neste âmbito, na primeira linha –, mas também indiretos, após o fim da vida útil daquelas, pois serão provavelmente despejadas em lixeiras a céu aberto, não se conhecendo, por enquanto, formas para a sua reciclagem e reaproveitamento. Eis as maravilhas do capitalismo extrativo que se julgava uma forma de capitalismo ultrapassado pela não menos gloriosa ‘revolução digital’ que com a inteligência artificial, o seu último grito, nos promete um futuro radioso. Tal como o detergente Omo, considera-se que esta revolução «lava mais branco».
Tudo aponta para que a brancura seja, porém, um logro, pelo menos para os que estão situados para além dos confins políticos do Ocidente não acidental. Transformada em alumínio, a bauxite, outro dos materiais que entra na fabricação dos novos automóveis elétricos, é um material leve que, ao contrário do aço, lhes permite que percorram grandes distâncias sem necessitarem de recarregamento, poupando assim energia e facilitando a vida aos seus utilizadores. Só que o lítio comparado com a bauxite até poderá ser considerado um material ecológico. Países como a Guiné-Conacri, situada na África ocidental, um dos maiores produtores mundiais, têm assistido ao massacre das culturas e atividades tradicionais que garantiam a subsistência dos pequenos agricultores e pescadores com a construção das infraestruturas necessárias para transportar este minério, em que se incluem explosões para «abrir caminho» ao progresso e ao aumento do «valor acrescentado». Nem mesmo a destruição dos pequenos artesãos indianos no século XIX, em consequência da primeira revolução industrial que introduziu a produção em série de tecidos de algodão teve consequências ecológicas tão graves como a alegada transição verde.
Duas sociedades, a Société Minière de Boké (SMB), susidiária do maior produtor mundial de alumínio, a China Hongqiao Group, e a Compagnie des Bauxites de Guinée (CBG), copropriedade do governo guineense e de empresas privadas, de que se destacam a norte-americana Alcoa e a australiana Rio Tinto, protagonizam a exploração do minério na Guiné Conacri. Símbolos maiores do capitalismo extrativo que continua a ser predominante a nível mundial, apesar da recorrente e enfadonha ladainha sobre as virtudes taumatúrgicas ambientais da revolução digital, e se estende, sobretudo, a outros países em vias de desenvolvimento subordinados à estratégia das multinacionais que registam lucros elevadíssimos, mas pagam indemnizações miseráveis aos camponeses africanos que assim perdem os campos de cultivo e aos pescadores que já não podem sobreviver com o pouco peixe que pescam. E tudo em nome do progresso e do desenvolvimento. Resta saber para quem, já que os africanos e outros «índios» devem pagar duplamente, com a destruição do seu habitat e do seu tradicional modo de vida para que nós, os pretensos «civilizados» e «civilizadores» do Ocidente não acidental possamos beneficiar da dita «transição verde», deslocando-nos em automóveis elétricos para o emprego e nos tempos livres.
A União Europeia que se vangloria por estar na vanguarda mundial da ‘transição verde’, já considerou a bauxite e outros materiais necessários à fabricação dos novos veículos elétricos como matérias-primas essenciais. Entretanto, apertou os critérios orçamentais de tal modo que apenas quatro dos 27 Estados membros estão em condições de reduzir as emissões de CO2 em, pelo menos, 55% até ao final da década. Eis como a pretensa transição verde vai de vento em poupa na Europa e noutras partes do mundo.
Joaquim Jorge Veiguinha