Artigo:António Borges Coelho, Crónicas e Discursos, Caminho, 2024 - Um excelente livro de proveito e exemplo

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António Borges Coelho, Crónicas e Discursos, Caminho, 2024

Um excelente livro de proveito e exemplo

Paulo Sucena

1. Antes de apresentar uma proposta de leitura de Crónicas e Discursos [C e D], de António Borges Coelho, [ABC], gostaria de deixar algumas notas biográficas sobre o autor com o propósito dos receptores entenderem com mais clareza o emissor do discurso, ou melhor, o sujeito da enunciação de cada um dos trinta e nove textos que compõem C e D, tanto mais quanto eles foram escritos num arco temporal bastante alongado, de 1963 a 2022, em circunstâncias históricas, políticas, sociais e culturais inquestionavelmente diversas.

António Borges Coelho nasceu em Murça, em 1928, e, após completar o ensino primário, frequentou o seminário, em Braga, durante cinco anos, de 1940-41 a 1944-45, no fim dos quais foi expulso. Completado o 7º ano do liceu e abandonado o curso de Direito, cujo 1º ano frequentara em 1948-49, ingressa no curso de Histórico-Filosóficas em 1949-50. Em 1950-51 abandona o curso no segundo ano para dedicar todo o seu tempo à ação política. Nesse ano é membro da Comissão Central do MUD Juvenil, a que aderira em 1949.

Em 1953 passa a funcionário do MUD Juvenil e como membro da Comissão Executiva é responsável pelas organizações da Marinha Grande, Baixo Ribatejo, Alentejo e Algarve. Atividade que exerceu com extremas dificuldades financeiras. No verão de 1955 deixa de ser funcionário do MUD Juvenil e passa a funcionário do Partido Comunista Português, como responsável nacional pelo Sector da Juventude.

Em 3 de janeiro de 1956 é preso em Lisboa pela brigada do sinistro agente da PIDE Rosa Casaco. Após a prisão e a tortura foi encerrado num dos abjetos «curros» do Aljube onde só um homem de rara têmpera resistiria, sem dar qualquer informação à polícia política, durante seis meses. Findos esses seis meses é transferido para o forte de Caxias de onde sairá para a sede da PIDE no Porto. Nesta cidade começa a ser julgado, em dezembro de 1956, no processo dos 52 do MUD Juvenil. Em junho de 1957 é condenado a dois anos e nove meses de pena maior, medidas de segurança e perda dos direitos políticos por quinze anos. Cumprirá a pena no forte de Peniche que as nefandas medidas de segurança prolongaram até 22 de maio de 1962, data em que foi libertado depois de cumprir, na totalidade, quase seis anos e meio de prisão.

ABC regressa à Faculdade de Letras de Lisboa e conclui a licenciatura, no dia 25 de novembro de 1967, com a defesa da tese Leibniz. O Homem, a Teoria da Ciência. É, entretanto, professor no ensino privado e em 1968 e 1969 é repórter do jornal A Capital, de que é um dos fundadores.

Em outubro de 1974, ABC inicia uma nova fase profissional, a de docente universitário, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Em 1987 apresentou-se às provas de doutoramento, tendo sido aprovado por unanimidade com distinção e louvor. No ano letivo de 1992-93 é eleito presidente do Conselho Pedagógico da Faculdade de Letras e aprovado por unanimidade para a vaga de Professor Catedrático.

A estes traços biográficos poderia juntar uma bibliografia muito rica, extensa e diversificada que vai desde os domínios da historiografia, do ensaio, da poesia e do romance até aos do teatro.

2. Ao pensar na sua obra e no homem e no cidadão que é ABC concluo com naturalidade que ele é uma das mais fulgurantes figuras da intelectualidade, da cultura, da cidadania, do pensamento e da práxis do Portugal contemporâneo. Este livro mostra inequivocamente a justeza do juízo de valor que acabei de formular. As nove secções em que C e D se divide – Caderno do repórter, Nos anos de brasa, Invasão do Iraque, Álvaro Cunhal, Discursos Políticos, No rasto da alegria, O mundo e os dias, Lugares e Galeria – são a prova de que a escrita de ABC revela uma penetrante leitura do real e uma percuciente capacidade de decifração da multíplice e por vezes intrincada rede que é a realidade.

Os textos recolhidos em C e D foram escritos ao longo de 59 anos e o seu conteúdo estende-se geograficamente da Pátria à Europa e ao Mundo. Se tivermos em conta o conceito de thème (Gerard Genette), aquilo de que se fala, poderemos dizer que nos deparamos com textos de onde ressuma uma irreprimível pulsão humanística, a par de outros em que é evidente um assumido amor à paz e ao progresso e uma veemente condenação da guerra. Alguns há que denunciam a tirania e a violência que avassalaram Portugal durante 48 anos, e escritos com o propósito implícito e por vezes explícito de incentivar os portugueses amantes da liberdade e da democracia a que não deixem apagar a memória do que foi o regime ditatorial de Salazar e Caetano.

Em abril de 2003, ABC escreveu no Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, uma sagaz reflexão cujo conteúdo permanece hoje com uma viva atualidade. Atentemos neste excerto:

 

Ouço os sinos de Hemingway que dobram. Dobram pela arrogância

das armas e o calar da diplomacia e do direito. Dobram pela

sementeira do ódio e contra os frutos malditos que germinam. Dobram

pela Europa dividida. Pelas Nações Desunidas. Dobram pela América

de Lincoln, de Walt Whitman, […], dobram pela América de Ernest

Hemingway, dobram pelas vítimas inocentes das Torres Gémeas.

[…]

A diplomacia tem de substituir a linguagem das armas. Parem com as

bombas que caem sobre os famintos de pão, de saúde, de liberdade,

de paz. Sobre o uivar das sirenes e o silvo das bombas ecoa um coro

imenso, global, biliões de mãos crioulas, negras, brancas, amarelas. É

preciso abrir um caminho para a paz

 

A este e a outros gritos de denúncia de uma realidade profundamente disfórica junta ABC ao longo deste seu livro um grito de esperança e confiança no futuro e na sageza dos humanos. A esperança que habita num homem para quem a amizade, como dizia, à conversa, Armando Baptista-Bastos, é um posto. Amizade admiravelmente explicitada nos seis retratos de amigos que compõem Galeria, a última secção de C e D. Antecipando a abordagem a alguns aspetos mais específicos de diversas partes de C e D, com que terminarei estas notas, diria que este é um livro de proveito e exemplo em que a prosa de ABC é repassada pela persuasão, uma figura de retórica que o autor usa no domínio dos afetos com tal mestria que é capaz de nos co-mover [o movere a que se refere Heinrich Lausberg em Elementos de Retórica Literária]

3. O meu propósito final é respigar alguns aspetos das crónicas e dos discursos que comprovem aquilo que de um modo sintético já escrevi anteriormente, com a acrescida preocupação de mostrar a alta qualidade da linguagem literária de ABC. Sob este aspeto deixo alguns pequenos excertos de crónicas e discursos. Começo por duas crónicas publicadas no jornal A Capital, em 1968, tendo como referentes um lugar e uma mulher. Uma tem como título “Damaia 1968” e a outra “A Obreira”. Da primeira retiro este parágrafo:

 

Uma bola amarela salta entre crianças, no largo onde medram o

restolho e flores silvestres. Rodeadas de alcofas, quatro ciganas

sentadas. Uma delas ri, balançando a trança tártara e

entre mostrando um avental amarelo, salpicado de pintas pretas.

E abertas e rasgadas sobre o largo, pesadas de cimento, as varandas

mostram gaiolas com pássaros, capoeiras, baldes de zinco e roupa

branca onde espreitam raparigas.

 

O segundo excerto é outro exemplo da agudeza do olhar com que o repórter de A Capital perscruta a realidade e como ele a transmuda em palavras tornando-a num objeto de arte dotado de um brilho que o que é observado não tem.

 

A claridade mal rompeu ainda as sombras da noite, mas já resplandece

em poalhas de ouro que ficam no ar e caem incendiando aqui e ali o

asfalto. Hoje a mulher fantástica leva o seu molho de cartões à cabeça.

Ficam a emoldurar o seu corpo pesado como um grande chapéu de

pesadelo. Para onde vai ela? Que preciosidades leva com tamanho

esforço? Lenta, penosamente, a Obreira interna-se nas terras malditas

levando estranhos e bizarros materiais para casas de um outro mundo,

de um outro planeta.

 

Numa escrita despojada, o cronista dá-nos num punhado de palavras pormenores carregados de um notório peso semântico acerca do tempo atmosférico e do espaço em que se move uma personagem «fantástica» que a paronomásia usada por ABC torna mais fascinante.

Já em 1963, um ano depois de sair do forte de Peniche, ABC mostrara numa crónica publicada, em 4 de junho, no Diário de Lisboa e intitulada “Aquilino e a Via Sinuosa, a sua inegável qualidade de prosador e de leitor de Aquilino, criador das inesquecíveis personagens Libório e Celidónia que foi por aquele traída e abandonada. Cito:

 

Os tempos não mudaram muito, olhai: penedos, pinheiros, verdilhões,

carriças. O padre Ambrósio está ainda à sombra, sentado na borda do

tanque para onde escorre água de uma fontainha e o Libório Barradas

tem o pensamento perdido na Celidónia ou na marafona da Dona

Estefânia, enquanto as palavras do padre mestre caem como folhas e

ficam a boiar na água do tanque.

 

Os três textos dedicados a Álvaro Cunhal com quem ABC esteve preso no forte de Peniche e a quem o secretário-geral do PCP acabou por coser a manga de uma camisola que o futuro historiador persistia em manter rota, oferecem-nos um impressivo retrato de um revolucionário e de um político que ninguém poderá apagar dos últimos 60 anos do século XX da história de Portugal. Vou transcrever apenas pequenos excertos:

 

Quando levaram o Álvaro para ser operado, a Fortaleza ficou mais

vazia. Faltava a sua palavra, a alegria contagiante e diária, mesmo nos

momentos mais difíceis a sua fé. Peso a palavra.

 

Mais adiante, a finalizar o texto publicado na Seara Nova, número 1723, 2013, ABC escreveu:

 

Não saía. Queria preservar a imagem e a dignidade. Ele sabia que era

o símbolo quase mítico, de décadas de luta e de sacrifício.

 

Termino as citações com a última frase de “Carta a Álvaro”, publicada no Jornal de Letras, 23-6-2005, em que ABC escolheu com rara inteligência o adjetivo certeiro, porventura o único, capaz de traduzir o que ele pensa de um período essencial da sua vida que de algum modo o irmana a Cunhal e à sua vida toda. «A parte mais pura da minha vida, vai a enterrar contigo, companheiro.».

Para mostrar alguma da violência que caracterizava o regime ditatorial de Salazar e Caetano de que atrás falámos, transcrevo um excerto de um discurso de ABC pronunciado no cemitério do Alto de São João, em 29 de outubro de 2006, de homenagem aos presos do Tarrafal.

ABC, depois de se referir aos trabalhos forçados a que eram sujeitos os presos políticos «sem outro sentido senão o da humilhação e o da destruição física», acrescenta:

 

Inventaram a «Frigideira», uma caixa de cimento de 9 metros

quadrados onde o ar e a luz entravam por buracos abertos na porta.

Por vezes a sede era tanta que passavam a língua pelas paredes

para absorver as gotas da respiração. Gabriel Pedro viveu naquele inferno

153 dias.

 

Aproximo-me do final daquilo que o tempo e o espaço me permitem escrever. Dos discursos proferidos por ABC começo por retirar daquele que pronunciou em 25 de abril de 2015, na inauguração do Museu do Aljube, o passo em que lembra o operário vidreiro José Moreira, um dos muitos presos políticos daquela sinistra cadeia, a quem um dia perguntaram «se fores preso o que farás?». «Farei o que puder», respondeu José Moreira. A modéstia da resposta é o sinal da grandeza do operário vidreiro e ABC faz ressaltar isso mesmo com uma parcimónia de palavras que nos conseguem profundamente co-mover ao dizer-nos tão só que José Moreira o que fez para não trair nem camaradas nem o partido foi perder a própria vida às mãos dos esbirros da PIDE que o torturaram até à morte. Finalmente, pela sua atualidade, retiro de um discurso proferido na Assembleia da República, em 28-01-2014, o segmento inicial onde há uma citação da Ética a Nicómaco, de Aristóteles.

 

A justiça parece ser a mais importante das virtudes, mais admirável

que a estrela da tarde e que a estrela da manhã. Ela contém todas as virtudes.

Para sublinhar como a temática da Esperança, de que já falámos, é relevante em C e D transcrevo um curtíssimo fragmento de um artigo publicado na Seara Nova, número 1718, 2011.

 

Os tempos não são favoráveis à Esperança. […]. Mas a Esperança vai

resistir, regada pela nossa luta e o despertar das novas gerações.

Direis: é um ato de fé. Remove montanhas. Aprendi essa verdade na

infância e na razão da História.

 

A secção Lugares oferece-nos admiráveis descrições do Alentejo, particularmente de Mértola, mas escolho algumas palavras dedicadas a Murça, terra natal de ABC, em que o sujeito empírico e o sujeito da enunciação se justapõem, uma vez mais, contribuindo assim para a sólida coesão deste livro e para a verdade da substância ontológica subjacente às suas páginas.

 

As minhas últimas palavras vão para aqueles que ficaram e mantêm

vivo o espaço milenário que foi dos nossos avós. Vão para aqueles que

mantêm vivas as instituições, que apagam os fogos e promovem a

entreajuda. Vão para aqueles que todos os anos lavram o pão e fazem

as festas do azeite e do vinho.

 

Apetece-me deixar um brevíssimo comentário a estas palavras: vão para aqueles que o historiador ABC nunca esqueceu.

4. Peço agora a ABC que me autorize a que, a terminar, seja eu a fazer um apelo: Professores do meu País, que amais a liberdade, a democracia, a paz e a justiça social, que acreditais na solidariedade e na fraternidade, que tendes esperança na construção de um mundo melhor, trabalhai este livro com os vossos alunos para que nos tempos que hão de vir a Humanidade se possa enriquecer com humanos mais humanos.

Versão resumida publicada no «Escola/Informação Digital» n.º 43 | julho/agosto 2024