Anedotário Político Lusitano
A primeira semana de novembro tem sido fértil em acontecimentos que poderão dar um importante contributo para o anedotário político nacional. O deputado do PCP António Filipe considera que o Presidente da República (PR) deu “ao Governo a senha que este precisava para rejeitar qualquer esforço sério de convergência que permitisse viabilizar o OE” (‘Público’, 3/11/21). Tal significa que o PR numa engenhosa manobra política, preparou o caminho para o PS reivindicar uma maioria absoluta nas eleições antecipadas, pois, como disse outro deputado do PCP, João Oliveira, “os pedidos de maioria absoluta de sucessivos membros do Governo não soam a resposta de improviso”. Talvez por isso, tanto o PCP como o BE tenham mandatado os seus representantes no Conselho de Estado a votar contra a antecipação das eleições legislativas, apesar de terem chumbado o Orçamento de Estado e, consequentemente, precipitado a queda do Executivo socialista.
Fernando Rosas, do BE, acossado pelas suas memórias de partidário da ‘Grande Revolução Cultural Proletária” do Grande Timoneiro Mao Zedong, de que, na juventude, foi partidário, elogia a postura política do seu partido por “ousar votar” contra “um OE que não serve os interesses do país”. “Ousar lutar, ousar vencer”, eis a questão! Porém, tal como o PCP, desresponsabiliza-se, a si e ao partido de que é militante, logo de seguida, não vá a sua ‘ousadia’ ter maus resultados num futuro próximo, afirmando apoditicamente que “foi a chantagem articulada por primeiro-ministro e Presidente que nos trouxe a crise política” (“Público”, 4/11/2021). Assim se retorna às ‘origens’ do discurso ultrarradical – apenas temporariamente suspenso no período da defunta ‘geringonça’ – dos herdeiros dos ‘idiotas úteis’ do maio de 68 francês que abriram caminho ao triunfo do neoliberalismo.
Pedro Nuno Santos, ex-ministro das infraestruturas do Governo deposto, também não fica bem neste retrato de grupo sem senhora quando continua a confiar ingenuamente na possibilidade de repetição da defunta ‘geringonça’. “Eu sei” - afirmou convictamente – “que isto incomoda muito a direita portuguesa. Mas vão ter de se habituar porque ela não foi um parêntesis na história da democracia portuguesa” (‘i’, 3/1/2021). Sem dúvida alguma! No entanto, esqueceu-se de acrescentar que tendo a geringonça terminado em tragédia, a repetir-se, o que é altamente improvável, será como farsa.
Mas o favorito ao primeiro prémio deste anedotário político lusitano é sem dúvida o candidato a primeiro-ministro do “Governo de Portugal” Paulo Rangel. “Vamos romper” – troa – “com os anos de governos socialistas que nos condenaram a 20 anos de estagnação arrastando-nos para a cauda da Europa” (‘i’, 3/11/21). Tudo se passa então como se os governos do PSD nestes 20 anos, e foram vários, passassem incólumes e impermeabilizados sob os pingos da chuva, sacudindo levianamente a água do capote das suas responsabilidades políticas pelo alegado estado do país. O deputado europeu do partido laranja volta à carga, afirmando-se um indefetível partidário da ‘mobilidade social ascendente’, quando afirma, em tom premonitório, que “chegou o tempo de o país sair deste declínio e dar de novo a cada português a oportunidade de subir na vida”. No entanto, fazendo um balanço do último governo do PSD em coligação com os parceiros do CDS/PP, os resultados desmentem as suas intenções, pois foram anos de mobilidade descendente, como atesta a elevadíssima taxa de emigração que conseguiu mesmo superar a dos anos da ditadura salazarista. Além do mais, o que importa à generalidade dos cidadãos conscientes de si não é o arrivista ‘subir na vida’ dos ‘Rangeis’ deste mundo, mas melhorar as suas condições de vida e seguir em frente.
No conflito em curso entre Rui Rio e Rangel, uma grande parte da imprensa portuguesa não se cansa de apoiar o segundo e menorizar e mesmo ostracizar o primeiro. Um dos mais caros partidários do novo candidato a presidente deste partido é sem dúvida o jornalista João Miguel Tavares. A propósito do adiamento das eleições diretas para este cargo originariamente marcadas pelo Conselho Nacional, em que os apoiantes de Rangel detêm atualmente a maioria, para 4 de dezembro, o cronista do ‘Público’ não hesita em lavrar esta requisitória: “A cultura democrática de Rio tem mais buracos do que um queijo suíço. Ele chama «tiros para dentro» a eleições internas: “Quem é o meu adversário. É o dr. Paulo Rangel ou o dr. António Costa”. Eu ajudo na resposta: primeiro é o dr. Paulo Rangel, e se o PSD e o país tiverem alguma sorte nunca chegará a ser o dr. António Costa” (‘Público’, 2/11/21). Apesar da habitual deselegância estilística – o estilo define o homem –, não podia ser mais claro.
Para outros (as) não existe outra alternativa no horizonte político senão um governo da direita ‘democrática’, o que não deixa de ser um contrassenso porque a direita portuguesa, mesmo sem o Chega com ou sem cordão sanitário, é, particularmente nas situações em que o país enfrenta as maiores dificuldades, estruturalmente antidemocrática com tiques monarquistas e fascizantes. Quem não tem dúvidas sobre a capacidade desta ‘direita democrática’ de conduzir o país a bom porto, apesar dos naufrágios do passado recente ou mais distante, é a jornalista do ‘Público’ Teresa de Sousa que nos brinda com este ‘aut-aut’ que preanuncia um SOS: “Desta vez, ou o PSD e a direita democrática conseguem um resultado eleitoral que lhes permita constituir um Governo com apoio parlamentar maioritário, ou o Presidente fica com um enorme problema nas mãos por ter recorrido à “bomba atómica”, apenas prevista em caso de estar em causa o bom funcionamento da democracia, sem conseguir uma nova solução governativa” (‘Público’, 31/10/21).
Epilogo: no caso de as coisas ‘correrem mal’, ou seja, se o PSD de Rangel ‘O Desejado’, que até já prometeu fazer um cordão sanitário “em volta do Chega” para tranquilizar a ‘direita democrática’, não conseguir uma maioria para governar, explodirá a ‘bomba atómica’ extemporaneamente acionada pelo PR. É de louvar esta espantosa clarividência política que assim, em contraponto sinfónico, faz coro com a dos que se opõem ou se opuseram à dissolução da Assembleia da República e à convocação de eleições antecipadas, depois de terem contribuído para a queda de um governo de esquerda. Trinta de janeiro foi a data marcada por Marcelo Rebelo de Sousa para a realização de eleições legislativas antecipadas. Logo saberemos se a bomba atómica explodirá ou não. Mas como mais vale prevenir que remediar é aconselhável começar desde já a armazenar comida e preparar a ida para os abrigos subterrâneos.
Joaquim Jorge Veiguinha