A tática de desresponsabilização de Putin e da teocracia iraniana
Depois de ter ameaçado o Ocidente com a utilização de armas nucleares, Putin ensaia uma tática de desresponsabilização relativamente à invasão da Ucrânia em que surge como vítima de uma guerra de agressão a um país soberano de que é o exclusivo responsável. O pretexto foi a rejeição internacional à assinatura dos “tratados de adesão” à Federação Russa das regiões de Donetsk, Lugansk, Zapórijia e Kherson, sufragados por alegados referendos promovidos pela potência agressora ocupante. O objetivo estratégico que esta tática pressupõe é tentar dividir o Ocidente e, em particular, a Europa, sem autonomia militar e completamente dependente da NATO e sobretudo dos EUA, de modo a bloquear ou pelo menos diminuir consideravelmente o envio de armas para a defesa da Ucrânia. Este objetivo não foi por enquanto conseguido, já que os EUA decidiram na terça-feira 28 de setembro conceder uma nova ajuda militar de 1,1 mil milhões de dólares ao país alvo da agressão militarista russa, o que ascende a um total de 16,2 mil milhões de dólares desde o início da invasão russa (Fonte: Le Monde, 1. 10. 2022). Alguns continuam a lançar-se contra o ‘militarismo’ ocidental que consideram ser o verdadeiro agressor com inconfessadas intenções de ‘dividir’ a Federação Russa, transformando assim o carrasco em vítima e a vítima em carrasco, já que o verdadeiro responsável desta corrida aos armamentos é apenas o regime autocrata de Putin que invadiu um país soberano.
Um aspeto mais recente da tática de desresponsabilização-vitimização putiniana é acusar o Ocidente e, particularmente, os EUA de ter suscitado “a tragédia do fim da União Soviética” cuja expressão atual é a tentativa de “desmembrar a Federação Russa” (Público, 1. 10. 22). “A tragédia do fim da União Soviética”, por mais que desagrade a alguns saudosistas para quem, no fundo, o regime de Putin é o seu herdeiro, não foi devida a uma conspiração ocidental contra a pátria do socialismo burocrático de Estado soviético, mas resultou da implosão de um regime ditatorial de partido único incapaz de fornecer em quantidade e qualidade os bens de consumo mais elementares à população dita ‘soviética’, enquanto aos estratos superiores da burocracia governante nada faltava. Um regime que se apodava de igualitário, mas que, para além do atraso tecnológico, instaurou uma desigualdade gritante entre o grupo burocrático dominante e o resto da população e que foi incapaz de suportar a competição militar com os EUA e o Ocidente. As reformas de Gorbatchev, recentemente falecido, apenas precipitaram o fim de um regime inviável que foi incapaz de se democratizar.
Putin torna-se também um herdeiro do ayatollah Ruholah Khomeini quando acusa o Ocidente de ‘satanismo’, defendendo os valores mais tradicionalistas de que se destaca a oposição à diversidade de género, aos direitos LGBT e a defesa da família nuclear tradicional contra outros tipos de famílias. Não se pense que o conservadorismo putiniano na esfera dos costumes é compensado por avanços na esfera da economia e sociedade russas: os oligarcas russos são os dignos sucessores dos estratos dominantes do socialismo burocrático de Estado soviético, enquanto a Rússia e os descendentes das ‘democracias populares’ da Europa de Leste ostentam um sistema fiscal baseado num imposto único sobre o rendimento: na Rússia é de 13%, e provavelmente influenciou a coligação da extrema-direita e da direita em Itália – Salvini defende a mesma taxa e Berlusconi uma taxa de 15%. Ainda existem dúvidas sobre a natureza oligárquica e reacionária do regime de Putin que combina autoritarismo político com um neoliberalismo fiscal com raízes em Hayek, Friedman?
A teocracia iraniana utiliza a mesma tática de vitimização-desresponsabilização da autocracia russa, acusando o Ocidente de estar por detrás dos protestos contra a morte em circunstâncias não esclarecidas da jovem estudante curda Masha Amini durante a sua detenção pela “polícia da moralidade” por utilizar ‘incorretamente’ o hijab que não cobria completamente os seus cabelos. Para o líder supremo, Ali Khamenei, são o Ocidente e Israel que estão alegadamente por detrás dos protestos por não poderem aceitar os progressos do Irão em matéria nuclear desde que a Administração Trump denunciou o acordo sobre o programa nuclear iraniano. Entretanto, as manifestações em defesa da liberdade e dos direitos das mulheres, desencadeadas por estudantes da Universidade Sharif de Tecnologia, têm sido ferozmente reprimidas. Segundo a Iran Human Rights, organização independente sediada em Oslo, já foram mortas 133 pessoas no país dos ayatollah. Organizações sindicais de professores iranianos defenderam a realização de uma greve nacional de professores e alunos contra a repressão. Espera-se que a FENPROF, que comemorou no dia 4 de outubro o dia mundial do professor, apele à solidariedade com estes sindicalistas em luta no Irão.
Joaquim Jorge Veiguinha