“A responsabilidade dos intelectuais”
Em artigo anterior abordei a falsa surpresa da COVID-19 como sintoma da falta de participação da classe científica na vida pública, conformando-se uma grande maioria ao papel de meros assalariados, alguns muitos mal-pagos, sem se assumirem como tal, nem disso reclamarem, como se esse problema não existisse.
Por que falham tantos os intelectuais enquanto possíveis influenciadores sociais?
Melhor dizendo: parecendo pouco ou nada lutarem por uma elevação dos níveis de racionalidade, ciência e arte do quotidiano mediático de estupidez, mau-gosto, acefalia e obscurantismo de largas fatias dos conteúdos mediáticos propalados na TV e na internet, nem que, pelo menos, por uma visível e concertada acção crítica, de que José Pacheco Pereira tem sido um dos poucos paladinos.
É óbvio, hoje, que este caldo de cultura em formato hertziano, avolumado em quantidade e virulência ao longo de décadas, tem criado as condições de base ao crescimento de um populismo político cada vez agressivo e eficaz, ao ponto de se traduzir em deputados e presidentes da república eleitos por esse mundo fora.
A par de um segmento do poder mundial detido por regimes autocráticos e extraordinariamente poderosos, como o chinês ou o russo, temos essa crescente epopeia de regimes democráticos governados por sociopatas, o que significa o controlo dos respectivos aparelhos militares e de segurança, com o potencial de os colocar ao serviço das suas agendas pessoais e dos poderosos interesses dos que os apoiam, em detrimento do bem comum e das causas justas que devem subjazer a uma democracia autêntica.
Obviamente, tudo isto se salda na diminuição de direitos, liberdades e garantias dos povos que vivem em regime democrático, mas acima de tudo, numa enorme e perigosa descrença daqueles que vêem o que está acontecer, principalmente dos que vivem sob a esfera dos regimes autoritários.
Contra esta doença política contagiosa só existe uma vacina e um remédio: a participação cívica intensa nas várias esferas ao dispor dos cidadãos, desde o nível local até ao internacional, da qual os intelectuais não se podem demitir, como uma grande maioria tem feito, por falta de consciência individual e de classe, resultante muitas vezes de uma idiossincrasia ensimesmada, dir-se-ia quase autista, dada a gravidades dos problemas que nos acometem (“Faltam cem segundos para o fim do mundo”)
Uma das vertentes é claramente a sindical, e falta muito sindicalismo, por exemplo, ao setor da investigação e do ensino superior, para o qual recordo esta possível fonte de inspiração: a greve de 2007 dos argumentistas que fazem a grandeza do show-business nos EUA, com excelentes resultados.
É preciso dar mais voz à classe dos que realmente fazem o mundo avançar, através do Direito, da Inovação, da Tecnologia, da Ciência, das Artes, em detrimento daqueles que abusam e parasitam o seu trabalho para acumular riqueza e privar a humanidade da dignidade que merece, sem a qual não é possível construir um mundo melhor.
Por outro lado, também é preciso que as leis que protegem a propriedade intelectual, não se tornem, elas próprias, instrumentos de opressão e de terrorismo económico, em vez de protectoras de legítimos interesses, desafio que também interpela muito directamente os intelectuais. Destaque-se a iniciativa de um português na construção de um ventilador de baixo custo, em opensource, resultante de uma parceria internacional de mais de 500 engenheiros como um dos bons exemplos, neste caso, em estado de emergência. Falta mais destas iniciativas em modo normal, quotidiano.
João Correia