A ‘nova’ nomenclatura
Quando em 1990, retornado do estrangeiro, retomei a minha atividade docente, tornei-me candidato, juntamente com outros colegas na mesma situação, à categoria de nomeação definitiva que tinha como objetivo a vinculação na carreira docente. Lembro-me, apesar de terem passado já mais de trinta anos, que o processo inicial de vinculação na função pública estava associado a um cerimonial que tinha como objetivo atestar a dignidade institucional do futuro servidor público. Após a aprovação da inspeção médica, o primeiro requisito para ascendermos a esta dignidade, éramos cumprimentados pelo clínico que a realizava, um servidor público como nós seríamos no futuro, que nos desejava as maiores felicidades pelo novo estatuto a que nos candidatávamos. Os mais novos devem provavelmente pensar que provenho de Marte por evocar tão singelamente esta cerimónia. E, de certo modo, até têm razão, pois atualmente já nem sequer somos considerados servidores públicos.
O Instituto Nacional de Estatística (INE) define a Administração Pública como “o conjunto de atividades de regulamentação e apoio à gestão de atividades que, pela sua natureza, não podem exercer-se numa base de mercado” (Fonte: DN, 4. 09. 2021). Ou seja: a Administração Pública não é mais do que um ‘agente económico’, mas que, no entanto, se restringe aos serviços da Segurança Social e às tradicionais funções de soberania que englobam os dirigentes políticos e os funcionários dos ministérios que representam o Estado no máximo do seu esplendor. Perante este brilho ou este fausto, que me faz lembrar o ‘roi soleil’, restam os ‘outros’: professores, médicos, enfermeiros que, apesar de trabalharem em escolas e hospitais públicos, já que não são considerados verdadeiramente como servidores públicos, mas, na melhor das hipóteses, como detentores de um contrato de trabalho em funções públicas, figura jurídica estruturalmente distinta da antiga nomeação-vinculação. Numa palavra, estes, ao contrário dos primeiros, já não prestam um serviço público, mas, o que poderemos designar por um ‘serviço ao público’, ou seja, são agentes económicos que concorrem no mercado com outros prestadores de serviços e que, por isso, já não se integram na ‘nova’ categoria de ‘emprego público em sentido estrito’ reservada aos primeiros.
Segundo Alda Martins, num excelente artigo publicado em 2016 no nº 7 da revista ‘Julgar’ (acessível on line, Revista_Julgar_7. pdf), este fenómeno expressa o que designa justamente por “laboralização da função pública”, que se caracteriza pela tendencial aproximação dos regimes laborais da função pública que não se integram no sistema de emprego público em sentido estrito do regime laboral geral de trabalho, de acordo com a Lei nº23/2004 de 22 de junho, bem como da Resolução do Conselho de Ministros nº109/2005 de 30 de junho. Em suma, todos os que ‘desfrutam’ de um contrato de trabalho em funções públicas, habitam, por assim dizer, numa espécie de limbo entre o público e o privado, relegados a uma nova categoria ‘estatutária’: a categoria do não-ser. O que demarca alguns deles dos privados é ainda possuírem um estatuto profissional, de que o estatuto da carreira docente é exemplo e paradigma. No entanto, o regime de laboralização da função pública em vigor com a sua tendência para diminuir o número de carreiras e para uma forma de contratação que se inspira no contrato de trabalho de natureza privada constitui a base jurídica da supressão do nosso estatuto, bem como das ‘carreiras especiais’ que não fazem parte da “Administração Pública”, segundo a classificação do INE. Eis como muito provavelmente nos tornaremos formal e juridicamente meros agentes económicos submetidos ao regime geral de trabalho que concorrem com outros no grande mercado de prestação de serviços ao público.
Joaquim Jorge Veiguinha