Artigo:A mudança deve acontecer da base para o topo, num movimento consistente, reflexivo, critico e consensualizado.

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Entrevista Joaquim Colôa

A mudança deve acontecer da base para o topo, num movimento consistente, reflexivo, critico e consensualizado.

A Educação Inclusiva em Portugal tem um percurso assinalável em 50 anos de democracia, o que destacaria como marcos desta evolução?

Neste percurso, de que Portugal se pode orgulhar dado o tempo que temos de democracia, assinalaria dois grandes momentos. O primeiro momento, é aquele em que a Dra. Ana Bénard da Costa, a obreira deste grande caminho, logo a seguir ao 25 de abril de 1974, consegue encetar um conjunto de dinâmicas de envolvimento de políticos e de técnicos que permitiu dar início às primeiras práticas, mesmo que ainda muito experimentais, de integração em escolas do ensino regular de crianças com condição de deficiência. É a ela que devemos os primeiros diplomas legislativos, dos quais destacaria o Decreto-Lei 319/91, entre muitos outros diplomas mais abrangentes. Para além disso, embora as instituições de Educação Especial tivessem sido criadas, na sua grande maioria, por associações de pais, é também à Dra. Ana Bénard que se deve o enquadramento normativo.

O segundo momento que destacaria, pelas grandes alterações estruturais, são os finais dos anos 90 do século passado. Em meu entendimento é quando, pela publicação da Declaração de Salamanca, a visão passa a ser a de inclusão. Em Portugal destacaria a publicação do Despacho – conjunto 105/97 que aporta toda uma nova visão do que devem ser serviços inclusivos, assentes em pressupostos de trabalho em equipa, de proximidade às escolas e interagindo no seio destas, um entendimento mais sistémico. Esta mudança foi possível pela visão partilhada por toda a equipa política do Ministério da Educação, da qual nomearia, de entre muitos, o professor Paula Abrantes, diretor geral e o Dr. Vasco Graça. O Ministério da Educação convida novamente a Dra. Ana Bénard da Costa para liderar todo o processo. Esta propõe o nome da Dra. Filomena Pereira, que se manterá nos serviços até aos tempos atuais. De forma geral as alterações são ao nível da filosofia e da organização de serviços, mantendo-se o Decreto-lei 319/91. Alicerçadas em mudanças estruturais com base em conceitos como ao nível da avaliação das aprendizagens, de flexibilidade curricular e de diferenciação pedagógica, como práticas essenciais para a inclusão dos alunos, as decisões são tomadas, diferentemente, a nível regional. Nos anos que se seguiram assistimos a mudanças a todos os níveis com base na partilha de boas práticas a nível nacional e mesmo internacional, o que operou um trabalho interserviços, com base em redes de aprendizagem regionais e nacionais muito interessantes.

Nesse percurso houve inúmeras tensões e barreiras e nem sempre as coisas aconteceram de forma positiva e isso também marcou estas décadas. Quais são os aspetos que destacaria que marcaram negativamente este caminho?

Os desafios têm sido muitos. Eu destacaria, mais do que momentos específicos, aspetos gerais como a desvalorização de conquistas realizadas que necessitavam de ser reconhecidas. A avaliação pouco consistente, pouco critica e nem sempre objetiva das políticas e das práticas, para que as boas práticas pedagógicas e decisões políticas pudessem ser mais no sentido da consolidação do que se fez e faz bem e de melhoria do que se apresenta como menos bem. Mais do que pressupostas inovações sucessivas, muitas vezes meramente conjunturais e só para responder a calendários político partidários e, ou de lóbis técnicos, económicos e, quantas vezes, pessoais, necessitamos, antes de qualquer mudança, identificar forças e fragilidades, sem culpabilizações e complexos. Às vezes, quem muito fala nas conquistas realizadas, parece desvalorizar essas mesmas conquistas nas decisões que toma. Essa negação que, muitas vezes, à mera “troca de nomes” mantendo-se as entropias. A visão conjuntural e pressupostamente de modernidade, sem atender que algumas ditas inovações são avaliadas negativamente noutros países. Não ter em conta o todo do sistema educativo e normativo, não haver uma visão integrada e integradora. A produção especifica de legislação para a inclusão quase, inevitavelmente, foca grupos específicos e não todo do sistema. Isto porque se as realidades das escolas não forem reconhecidas as decisões normativas tenderão sempre a ser motivo de entropia mesmo que, muitas vezes, em nome da inclusão.

Recentemente, foi aprovada legislação, nomeadamente o Decreto-Lei n.º 54/2018 de 6 de julho, denominado “Regime Jurídico da Educação Inclusiva”. Que análise faz desta legislação e da forma como tem sido implementada e assumida pelo sistema educativo?

Eu fui e sou muito critico deste diploma legislativo bem como de muitas das alterações introduzidas pela Lei 116/2019 que em alguns casos criou ainda mais confusão no que se refere ao entendimento do pretendido tanto quanto à organização de serviços, como às próprias práticas. Uma lei que permite muitas interpretações não é clara. Nela inscrevem-se de forma ambígua alguns conceitos e modelos de ação. Para além disso, não se teve em conta a necessidade de “apetrechar” os professores e as escolas com os saberes e os instrumentos necessários e em consonância com os modelos de ação que se defendem, por exemplo o caso do modelo multiníveis. A forma como foram inscritos na legislação e são explorados só aumentaram a burocracia, a confusão e o pouco rigor relativamente à sua implementação.

Os números mostram que o objetivo de diminuir o número de alunos encaminhados para a Educação Especial, tendencialmente não se mantém. Para não me alongar muito com números e dados, lembro as estatísticas do Ministério da Educação, o último estudo do CNE, alguns estudos que vão sendo publicados, como o da FENPROF.

A própria OCDE, no seu relatório de avaliação, refere que este normativo está a ser entendido como mais uma legislação para a Educação Especial, e refere desafios quanto às discrepâncias entre organizações escolares e zonas geográficas, às práticas de colaboração, aos financiamentos, etc. Permitam-me usar uma metáfora: ninguém coloca em causa ou interpreta de diversas formas o código da estrada. Ninguém nega que o sinal STOP obriga a parar, claro que depois alguns condutores poderão parar mais ou menos abruptamente, mas exige-se-lhes que parem. Embora exista liberdade para desenhar as rotundas tendo-se em conta o contexto físico e cultural, ninguém nega as regras da circulação nas mesmas. O Decreto-lei 54/2018, surge porque havia muitas críticas, até internacionais, à legislação anterior, mas a verdade é que algumas das barreiras e entropias mantêm-se e, em alguns casos, até aumentaram.

É crescente a retórica relativamente ao conceito de educação inclusiva. Cada nova legislação é apresentada como “um mundo novo” que movimenta toda uma “máquina”, muitas vezes, com sentido endogâmico. As organizações tendem a responder reactivamente, mantendo-se acomodadas. São escassas as escolas que privilegiam as reflexões críticas, objetivas e alicerçadas na realidade. Depois temos interesses que se movimentam, de forma mais ou menos clara, cada vez que se tenta refletir criticamente sobre estas questões. A própria academia tende a denotar comportamentos reativos e de acomodação, sendo mero eco de um discurso formatado. Continuam a predominar processos de avaliação baseados em pressupostos classificativos, a ênfase em modelos de remediação e de “discrepância” e a manutenção de “guetos nas escolas” tantas vezes mimetizando as práticas e os modelos das instituições de Educação Especial.

É premente uma visão abrangente e integradora do sistema educativo tanto ao nível das políticas, nomeadamente da legislação, como das práticas. É tempo de fazermos um compasso de espera que preveja momentos formais de reflexão que possibilitem a objetividade de decisões. Envolver as escolas, os professores, os assistentes operacionais, os pais, etc. As mudanças devem ter o seu epicentro nas escolas. A mudança deve acontecer da base para o topo, num movimento consistente, reflexivo, critico e consensualizado. A inclusão nunca acontecerá com base em calendários conjunturais e assentes em “reflexões de capelinha”.

Os professores de Educação Especial têm visto as suas funções alvo de diversas interpretações e a aplicação do seu estatuto varia mediante os Agrupamentos. Como vê o papel destes docentes e da própria Educação Especial, no apoio específico e na promoção de uma Educação Inclusiva na nova realidade das escolas e como seriam as suas atribuições e formação?

A ambiguidade das funções dos professores de Educação Especial decorre de muitas das contradições que referi anteriormente. Tem havido clara desvalorização de conquistas realizadas nestes 50 anos e do papel de muitos dos seus agentes da “linha da frente”.

As repercussões da forma como é entendida e disponibilizada a formação especializada e contínua, tem impactado negativamente na função dos professores. Parece haver uma crise de identidade profissional.

Em minha opinião não existe contradição entre a assunção de um sistema educativo inclusivo e a ação dos professores de Educação Especial nas escolas, mas a realidade por vezes nega esta minha perceção. As causas são múltiplas: a formação e os discursos retóricos e de circunstância que começam e acabam na legislação, fragilizam as reflexões críticas, verdadeiras alavancas de mudança em contextos concretos, ou seja, nas escolas. Os professores de Educação Especial continuam, em meu entendimento, a ser peça chave, na colaboração em ações de gestão do currículo, de diferenciação pedagógica, na avaliação diferencial de alunos, mas também na avaliação de processos, no trabalho direto e específico com alunos com condições mais complexas, na organização de contextos de maior participação. O trabalho dos professores de Educação Especial tem uma dimensão de ação no todo da escola, como qualquer outro professor, mas não deve negar funções específicas que não se coadunam com a manutenção de “salas gueto” (sem negar a necessidade de algumas escolas terem espaços específicos para determinado tipo de ações), com explicações a alunos com dificuldades de aprendizagem, etc. Os professores de Educação Especial não podem ser guardadores de alunos de condição física, emocional e comportamental mais complexa. Guardadores e únicos responsáveis por alunos que a escola, na prática, continua a olhar como sendo “alunos com defeito”. Infelizmente, a realidade em mutos escolas, paradoxalmente mesmo em algumas onde os discursos institucionais são sistematicamente adornados com a palavra inclusão.

As comunidades são diversas e as escolas devem refletir e responder à diversidade. As escolas devem ser completas. Escolas onde os papéis dos professores são diferenciados, mas todos são importantes, assim como os assistentes operacionais, os encarregados de educação e até mesmo outros profissionais como os de saúde. Agentes que têm papeis diferentes, mas às vezes funções semelhantes. Tem que haver colaboração entre os diversos professores, entre os diversos profissionais e entre os diversos serviços. A realidade avisa-nos que não é pelo facto de a legislação prescrever a manutenção de uma equipa multidisciplinar que a ação se revela mais multidisciplinar e colaborativa. Nem as práticas assumem cariz pedagógico em detrimento da vertente médica e classificativa ou os processos de avaliação tornam-se mais diferenciais e menos classificativos e com menor pendor de elegibilidade para a Educação Especial. Também não é por a legislação prescrever a possibilidade de Planos de Saúde, que existe mais colaboração e proximidade de trabalho e reflexão com os serviços de saúde.

Não há escola sem alunos, mas também não há sem professores, bem comos sem outros agentes educativos. Para que a escola seja mais inclusiva e potencie a participação e equidade, todos os agentes são importantes, em colaboração, na partilha de uma linguagem e princípios comuns. A colaboração é essencial, assim como o é a formação, inicial, continua e especializada e a reflexão critica.

 

RESUMO BIOGRAFICO

Joaquim Colôa

Professor de Educação Especial.

Doutorado em Ciências da Educação com especialização em avaliação para as aprendizagens.

Curso de formação avançada na área das políticas de avaliação, avaliação de

projetos e avaliação de aprendizagens.

Tem o mestrado em Educação Especial. Pós-graduação em psicomotricidade.

É membro do Comitê Científico do Centro de Investigação Internacional, na área científica da Inclusão e Formação de professores, da Università Europea di Roma.

É investigador, colaborador no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e é membro da Rede europeia e-COST.

Investigador, autor, formador, orientador e arguente em diversas instituições de ensino superior nacionais e internacionais, também na organização.

Integrou diversas comissões organizadoras e científicas de congressos, tanto nacionais como internacionais.