Artigo:A intocável propriedade privada

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A intocável propriedade privada

A Constituição da República Portuguesa (CRP), estipula no nº1 do artigo 62º o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte do proprietário. No nº1 do artigo 65º a CRP estabelece também que «todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar».

Tem suscitado muita polémica o arrendamento coercivo de imóveis devolutos integrado no programa Mais Habitação do Governo. Caso o proprietário destes imóveis não o coloque no mercado de arrendamento, o Estado avançará para o arrendamento forçado. Se o edifício necessitar de obras de reabilitação, o valor destas será descontado nas rendas que serão cobradas pelo proprietário. Em Lisboa, existiam em abril 48 000 fogos vazios de propriedade privada, enquanto se torna objetivamente impossível a uma família de rendimentos médios e médio baixos pagar uma renda compatível com o seu rendimento disponível e a uma de rendimentos baixos sequer um quarto fora do regime de alojamento local. Nestas condições, o direito à propriedade privada entra em contradição flagrante com o direito social à habitação que também é um direito constitucional.

Um coro de críticas desencadeou-se no decurso da consulta pública ao programa Mais Habitação. Relativamente a esta medida, Rui Rocha, o novo líder da Iniciativa Liberal, invocou o Segundo Tratado do Governo do filósofo britânico John Locke, publicado em 1690, para invocar o «direito natural» de propriedade violado pelo regime de arrendamento forçado de imóveis devolutos. Saúda-se Rui Rocha por ter lido esta obra, uma exceção na ignorância generalizada da classe política lusitana relativamente aos clássicos do pensamento político. No entanto, as suas considerações estão, na melhor das hipóteses «out of date», já que Locke contestava a propriedade feudal numa época de ascensão da burguesia, quando atualmente se vive no contexto de um capitalismo oligopolista em que grandes fundos imobiliários se tornam proprietários de uma parte cada vez maior do património urbano das grandes cidades para fins de natureza especulativa. Em Lisboa, 25% dos imóveis desocupados que são propriedade destes fundos situam-se nas freguesias de Arroios, Penha de França e Misericórdia que não são as freguesias mais pobres da capital (Fonte: i, 7/3/ 202). Em 2018, a seguradora Fidelidade, propriedade do grupo chinês Fosun, vendeu 277 edifícios que abrangiam 2000 casas ao grupo norte-americano Apolo por 425 milhões de euros, despejando pura e simplesmente os inquilinos que os ocupavam sem lhes reconhecer o direito de preferência, exemplo que não é um caso isolado, sendo este negócio sufragado por alguns banqueiros, de que se destaca António Ramalho, presidente do Novo Banco naquele ano para quem «vale a pena vender hoje e não guardar [os negócios] para amanhã» (Público, 27/fevereiro/2023). Neste contexto, as casas de locais para viver tendem a transformar-se cada vez mais em ativos financeiros para a valorização do capital dos «novos donos das cidades», os grandes fundos imobiliários.

As considerações de Rui Rocha podem considerar-se relativamente «soft» face a outros representantes de uma direita cada vez mais radicalizada e cada vez mais próxima da extrema-direita. Mira Amaral, que foi ministro do partido do Professor Cavaco, afirma que «temos um governo e um primeiro-ministro luso-comunistas, como é bem visível na Educação, no SNS e agora na Habitação” (i, 7/3/2023). No que respeita à Habitação, considera que o Estado tem milhares de imóveis devolutos que deveriam ser postos no mercado de arrendamento, mas esquece que a maior parte destes imóveis em Lisboa são de propriedade privada e alguns pertencem a fundos imobiliários em zonas em que o valor da propriedade tende a valorizar-se, o que põe em causa o direito social à habitação pelo qual o ex-ministro do Professor Cavaco não tem a mínima consideração. A APEMIP, associação dos mediadores imobiliários afina pelo mesmo diapasão, pois considera que «as medidas coercivas e de posse administrativa nada resolvem e provocam o caos e a instabilidade no mercado, retirando confiança aos proprietários e pondo em risco a valorização dos seus ativos” (DN, 1/03/2023). Pergunta-se: se a valorização dos ativos dos proprietários está em risco, por que motivo não os colocam no mercado de arrendamento, mantendo-os devolutos? Eis a questão, a que os fundos imobiliários já deram uma resposta: a valorização especulativa do edificado para na altura adequada, quando o preço dos imóveis e das rendas na capital atingirem níveis que lhes garantam o aumento dos seus superlucros, pois o céu é o limite superior, e os lisboetas forem transferidos primeiro para a periferia, depois para as zonas periurbanas e, finalmente, despejados no Atlântico que é o limite inferior, já que até em inúmeras pequenas cidades os preços das casas e o valor das rendas estão a disparar. Na cidade de Lisboa aumentaram os despejos entre 2021 e 2022, após a curta pausa do ano pandémico, e cresce também o número de pessoas que aufere um salário muito baixo e vive na rua porque não consegue alugar um quarto na capital. De acordo com o missionário José Duarte que presta apoio a populações carenciadas, estão de novo a despontar as barracas na região de Lisboa: “Há cada vez mais na região de Lisboa. Todos os dias se constroem novas e vai ser cada vez pior” (Público, 7/3/2023). Ou seja, tudo aponta para o ressurgimento no século XXI dos bairros de barracas e de casas abarracadas que foram erradicados nos anos 90 do século passado.

 Nesta situação, em que campeia a especulação imobiliária e cresce o alojamento local em detrimento do arrendamento de longa duração para satisfazer as necessidades do lúmpen turismo e dos proprietários daqueles estabelecimentos que se opõem ao pagamento de um imposto extraordinário sobre as rendas auferidas e que permitem a alguns reintegrar o «investimento» que fizeram na renovação dos edifícios em poucos anos depois de terem pressionado os inquilinos tradicionais a abandonar o imóvel, e em que a pouca economia produtiva que resta no país está cada vez mais ao serviço do parasitismo imobiliário e rentista, é lícito, parafraseando Proudhon, fazer a pergunta: “O que é a propriedade? Resposta: «A propriedade é o roubo».

Joaquim Jorge Veiguinha