Artigo:A inflação, a consolidação orçamental e o horror de ser pobre, Carmo Afonso, in Público, 29/04/2022

Pastas / Informação

A inflação, a consolidação orçamental e o horror de ser pobre

A realidade dos trabalhadores portugueses é que, se não houver um aumento nos salários, adequado à taxa de inflação, perderão, e a título permanente, poder de compra.

Uma pessoa está deitada na banheira a desfrutar de um banho de imersão. A tampa não está bem vedada e, por isso, mantém a torneira aberta. Tenta compensar a perda de água para continuar o seu banho.

A inflação não é um mal em si mesmo. Se os salários aumentarem de forma a permitirem fazer face à subida generalizada dos preços, a vida continua. É preciso de facto manter aberta uma torneira, e com um jato que permita que o nível de água não diminua, compensando quem vive dos rendimentos do seu trabalho.

É preciso manter aberta uma torneira, e com um jato que permita que o nível de água não diminua, compensando quem vive dos rendimentos do seu trabalho

Parece não ser esta a estratégia do Governo.

António Costa defendeu que a atual inflação é transitória e que, assim sendo, não é preciso aumentar salários de forma permanente. Parece existir alguma lógica nesta afirmação. Importa então clarificar se assim é.

O aumento dos preços que resultar do atual surto inflacionista virá para ficar. Ou seja: mesmo que a taxa de inflação venha a descer, e espera-se que sim, ela não passará a ter uma evolução negativa, não regredirá. Resultado? Os novos preços, os que resultarem da inflação prevista para este ano, manter-se-ão. No próximo ano (ou no seguinte) poderemos ter uma taxa de inflação mais baixa que a deste ano, mas os preços não diminuirão. Cai por terra o raciocínio.

A realidade dos trabalhadores portugueses é que, se não houver um aumento nos salários, adequado à taxa de inflação, perderão, e a título permanente, poder de compra.

Do Estado.

Quando os preços aumentam a receita fiscal também aumenta e o Estado capitaliza-se. Tem assim os meios para fazer aumentos salariais. Esta medida, não sendo de combate à inflação, permite viver com ela. Não é a cura mas é remédio.

A opção do Governo pode ser outra. A de defender que aumentos salariais irão agravar a inflação. E, novamente, parece existir lógica no raciocínio. Sucede que, e a simples observação do mercado permite essa conclusão, a atual inflação não resulta de um aumento da procura. Ela é essencialmente resultado das condições da oferta. Os portugueses poderão já estar a conter-se nas compras e essa contenção não manifesta a potencialidade de produzir uma diminuição nos preços.

Outras razões podem ser invocadas para não aumentar salários. Desde logo a lógica de consolidação orçamental com vista a acautelar a possibilidade, previsível, de aumentos das taxas de juro pelo BCE e o consequente aumento da taxa de juros da dívida pública. Consolidação orçamental é o refrão de uma música familiar.

A inflação é concreta e muito palpável. Não é só quando se abastece o depósito do carro. Está nas prateleiras dos supermercados, na fatura da eletricidade e do gás. Não se está a falar de uma abstração ou de uma questão académica. E não são apenas os trabalhadores os penalizados. As empresas também são atingidas. É um problema, para quem o encara assim, transversal. É certamente também uma oportunidade e há quem faça dinheiro com ela.

A própria esquerda reconhece vantagens em taxas significativas de inflação, na medida em que a economia cresce e a dívida diminui. Não pode é conviver com um surto inflacionista desacompanhado de aumentos salariais. Nesse cenário acontecerá uma inevitabilidade: o aumento da pobreza.

Ninguém quer ser pobre. Bertolt Brecht no poema O Horror de ser Pobre escreveu:

“O Pobre

(...)

A Terra enxota-o. O vento

Não o conhece. A noite faz dele um aleijado. O dia

Deixa-o nu. Nada é o dinheiro que se tem. Não salva ninguém.

Mas nada ajuda

Quem dinheiro não tem.”

O receio de ser pobre acompanha os que vivem no mundo capitalista. Quando se vive num país pobre esse receio ganha mais significado e acompanha as pessoas como uma sombra. E a inflação, para quem vive dos rendimentos do seu trabalho, significa vulnerabilidade à pobreza. Uma banheira sem tampa.

A direita e a esquerda não têm a tradição de se entender na forma de lidar com a inflação. Será interessante observar agora que políticas seguirá este Governo e se de fato corre o risco de dar razão aos que lhe chamam marxista ou socialista. Pode ser que estejam a chamar rameira a uma catequista.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Advogada