Artigo:A génese otomana do multiculturalismo

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A génese otomana do multiculturalismo

Definição: multiculturalismo (ou pluralismo cultural) é a coexistência de várias culturas num mesmo território, com pelo menos uma dominante. O domínio de grupos culturais que condicionam outros é o problema do multiculturalismo. A versão justa e igualitária de uma sociedade multicultural é utópica.

O Império Otomano foi fundado no final do século XIII e manteve-se com diferentes configurações até se desmembrar no final da Grande Guerra (1918), de que resultou a actual Turquia. Os variados povos do Império Otomano, dos Balcãs, Norte de África, Médio Oriente e Cáucaso, foram governados pela Xária, a lei islâmica que, na prática, consiste em decantar do Alcorão o Código Civil.

Do século XV ao século XIX, vigorou o sistema do millet (nação, em árabe; termo então usado para designar comunidades religiosas reconhecidas pelo poder otomano) e aplicado o estatuto do dhimmi (pessoa protegida, em árabe) aos não-muçulmanos que professavam “as religiões do Livro” (cristãos, judeus e persas zoroastrianos). Alguns teóricos do multiculturalismo, que procuram modelos históricos da cidadania diferenciada e das políticas do reconhecimento da identidade, celebram a originalidade histórica deste sistema e o carácter ímpar da sua tolerância.

Por exemplo, o filósofo canadiano Will Kymlicka afirma que o sistema do millet constituiu um modelo para os direitos das minorias, e que em todo o Império Otomano se respeitavam as tradições e práticas jurídicas e a liberdade de culto de cada grupo religioso. Também o sociólogo britânico Tarik Modood, defensor do multiculturalismo no Reino Unido, considera o sistema do millet do Império Otomano a primeira sociedade plural da História.

Em concreto, cada uma das populações não-muçulmanas era agrupada num millet, que, sob chefia otomana, se auto-administrava nos aspectos teológicos e morais, mas conformava-se às leis do Império em tudo o resto. Nesta forma de governação, só os muçulmanos podiam ser membros de parte inteira do Estado, enquanto os não-muçulmanos eram designados “protegidos” (dhimmi), tendo um estatuto inferior — por exemplo, em tribunal, o testemunho de um dhimmi nada valia contra o de um muçulmano; estavam sujeitos ao devxirme, o tributo de sangue para o serviço imperial, que consistia na retirada às famílias de crianças e jovens do sexo masculino; os dhimmi só existiam pela mercê dos muçulmanos, que os podiam matar, o que se traduzia na jizya, taxa de compra da vida; e não podiam exercer funções políticas ou administrativas. Só convertendo-se ao Islão ultrapassariam esta inferioridade.

A utilização de conceitos como “tolerância” e “minoria religiosa” induz os significados que estas palavras têm hoje na cultura laica europeia e ocidental, o que não era a realidade do millet e dos dhimmi.

Hoje, a deriva radical das reivindicações identitárias estará a possibilitar formas arcaizantes de cidadania diferenciada, em que o comunitarismo étnico, religioso e de género corrompe e procura sobrepor-se à cidadania igualitária e universalista herdada das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789).

 

Francisco Martins da Silva