A França
Depois da Paz de Vestfália — o conjunto de tratados que arrumou a Guerra dos Trinta Anos, em 1648 —, surgiu um conceito de paz, que se pretendia duradoura, baseado no equilíbrio de poder de um novo sistema internacional pautado pelos princípios da soberania estatal e do Estado-nação.
Esta nova ordem internacional viria a ser aprofundada em 1815 no Congresso de Viena e em 1919 no Congresso de Versalhes. De todo este longo processo civilizacional da Idade Moderna, a França emergiu e consolidou-se como a potência dominante do Ocidente. Desde a faustosa corte do Rei-Sol, em Versalhes, que a França passa a afirma-se como o farol cultural do mundo. A moda, a arte, a ciência, a economia e a política que de lá emanavam eram o paradigma a seguir. Até o nosso D. João V quis imitar Versalhes em Mafra.
Esta hegemonia começou a esbater-se a partir da Primeira Guerra Mundial e esfumou-se definitivamente com a Segunda. A intelectualidade europeia, os seus cientistas e criativos, fartou-se da Europa, dos seus estúpidos conflitos, das perseguições e das péssimas condições de vida, e refugiou-se sobretudo nos Estados Unidos, que a recebeu de braços abertos, dando-lhe condições para realizar todo o seu potencial. Os Estados Unidos lucraram muito, cultural e economicamente, com a loucura da Europa durante as duas guerras mundiais. E o farol da civilização ocidental desloca-se, então, de Paris para Nova Iorque. E assim ficou até hoje, apesar do macartismo, apesar de Nixon, apesar Reagan, apesar de Bush, apesar de Trump.
Ainda nos anos setenta do século XX havia um cinema em Lisboa, o Star, na Avenida Guerra Junqueiro, que só exibia cinema francês, e de lá vínhamos fascinados com os filmes de Godard, Truffaut, Resnais, Besson, Lelouche, etc. Os namorados, num arroubo de erudição, ainda declaravam um intenso Je t’aime. Hoje, quando dizem I love you, soa apenas banal. Nessa época, nas escolas portuguesas, o Francês ainda era a primeira língua estrangeira. Hoje, os alunos detestam as aulas de Francês e só não as evitam se não puderem, porque a língua e a cultura francesas não lhes diz nada. E para os mais velhos, a França já é só uma recordação. Cinemas como o Star desapareceram e seriam impensáveis hoje. A França já não faz as modas e passou definitivamente de moda. A França deixou de ser essa extraordinária voz dirigida a todos os povos do mundo, que o candidato conservador François Fillon, derrotado pesadamente nas primárias, ainda acha que é.
Hoje a França só é notícia pelo impensável sucesso dos herdeiros ideológicos do execrável governo fantoche de Vichy, do Marechal Pétain, colaboracionista com o nazismo e anti-semita. A xenofobia e o racismo, condensados nesse conceito francês que é o chauvinismo (o corajoso Nicolas Chauvin nunca teve nenhuma culpa disso, claro), são hoje continuados por um quarto dos eleitores franceses, sob a batuta fascista, anti-Europa e anti-globalização de Marine Le Pen. Os outros três quartos dividem-se entre a abstenção e o apoio relutante a Emmanuel Macron.
Le Pen não oferece dúvidas. Proteccionista, amiga de Putin e de Trump, inimiga de Merkel e fazendo declarações demagógicas contra o grande capital e os ricos, verdadeiramente não engana ninguém. Mas a tribo que a apoia é imune a todo este potencial de catástrofe, e votou nela por se rever desde sempre no seu discurso de extrema-direita.
O ambíguo Macron é apenas opositor a Le Pen. Defende genericamente a mundialização e a abertura da França ao mundo e pisca um olho hipócrita aos imigrantes e aos refugiados. Mas no passado recente chegou à ribalta política pela mão de François Hollande, tendo sido seu ministro da Economia, e criou a chamada Lei Macron que facilitou despedimentos colectivos e aventuras bancárias que favoreceram os mesmos de sempre. Também não convence ninguém. Quem votou nele fê-lo com medo de Le Pen.
O resultado destas eleições francesas não é motivo de festa. Desde logo porque Macron é o tipo de político que contribui para o pântano social onde medram Le Pens e Trumps. Em segundo lugar, porque a extrema-direita continuará influente e actuante, e a vitória pífia deste mal menor chamado Macron poderá significar um regresso à instabilidade da IV República, que entrou em colapso depois de mudar vinte e uma vezes de governo em doze anos. Um Presidente francês precisa sempre de uma maioria parlamentar para poder governar. Um mais que previsível resultado eleitoral semelhante nas próximas legislativas permitirá à extrema-direita minar as instituições e inviabilizar a prazo o governo de Macron.
Noutro tempo diríamos, são franceses, que se entendam. Hoje encontramo-nos amarrados a uma União Europeia cujas vicissitudes nos afectam gravemente. Dependemos de uma União Europeia forte, convicta, coesa. A França já não dita as modas mas influirá sempre decisivamente no futuro da Europa. Um Presidente francês que não é carne nem é peixe dará espaço de manobra ao grupo crescente dos que defendem a desagregação da União Europeia.
E, no entanto, se Macron prevalecer e conseguir restabelecer o eixo franco-alemão e reforçar a Europa, a França pode reinventar-se como farol político demonstrando que a direita e a esquerda já não fazem sentido.
Francisco Martins da Silva