A força do Camões é, também, a força de uma comunidade
Lígia Calapez | Jornalista
Foi uma longa conversa, como sempre informal, sempre questionadora, com João Jaime, diretor do liceu Camões. Uma conversa que foi também um cruzar de histórias (de que aqui damos breve síntese). Histórias da luta pela reconstrução do Camões. Histórias do próprio liceu Camões e de como se foi consolidando a “comunidade camoniana”. E, ainda, da construção da escola democrática e das evoluções e involuções da gestão escolar.
Subjacente a todas estas histórias, a afirmação do primado da democracia, do envolvimento de todos. Uma aposta na cultura e liberdade, sempre presente e de forma profusa. No espírito de uma herança camoniana: “Mais o Camões inquieto, mais o Camões contestatário. O Camões que esteve sempre do outro lado”.
Isto é como Camões – as obras estão sempre inacabadas…
A longa saga do processo de requalificação do Camões é, também, um exemplo de persistência e de envolvimento de muitos.
“Em 2009, quando tomámos posse, vivia-se uma situação em que o Camões não tinha entrado na primeira fase nem na segunda fase da Parque Escolar”, relata João Jaime. Quando das comemorações do centenário do Camões, em outubro do mesmo ano, “disseram-nos que o Camões iria entrar na terceira fase. Conheci o arquiteto, o João Pedro Falcão de Campos, que acabou por fazer o projeto. Começou-se então uma discussão sobre o projeto, uma discussão evolvendo os alunos”.
Um debate muito vivo e que é expressão da própria forma de vivência do Camões. “O projeto punha em causa algumas árvores, nomeadamente a avenida das tílias – e os pátios. E era uma questão muito sensível para os alunos e para a comunidade educativa. Foi uma negociação que levou a fazer-se um estudo fitossanitário. Houve uma discussão muito participativa com a Parque Escolar. Por isso, demorámos algum tempo”.
O projeto vai a concurso em 2011. Mas há então eleições antecipadas. E uma das primeiras decisões do novo governo, liderado por Passos Coelho e com Nuno Crato como ministro da Educação, foi suspender as obras da Parque Escolar.
“Foi um murro no estômago”. A escola estava muito degradada. Então, “avançámos com uma primeira iniciativa – Pintar Camões. Os pais e os alunos estiveram um fim-de-semana aqui a pintar”. Depois, ocorreram outras. Sempre com a participação da “comunidade camoniana”. Em 2013 organizou-se uma gala no Coliseu, envolvendo um conjunto de antigos alunos. E houve vigílias, à noite. “Havia um grupo de antigos alunos que foram ativistas. Com reportagens, com petições.”
“Tivemos de esperar por 2015”. E é “com António Costa e uma maioria de esquerda” que se retomam, finalmente, as obras do Camões (e do Conservatório). Na primeira reunião, para discutir o projeto, “levámos os pais e um conjunto de professores, para justificar a importância da obra”.
A obra é retomada em 2015-2016. Com o mesmo arquiteto, Falcão de Campos, e a preciosa participação de Fernanda Fragateiro. Mas com um orçamento claramente inferior. Ficaram de fora, por exemplo, a zona circundante à escola, e o museu da escola “que se pretende um museu virado para a cidade”.
Um processo que será para continuar. “Sempre na ideia de nunca baixar os braços, não desistir”. E valorizar “as pessoas que, independentemente do seu pensamento, estiveram sempre muito connosco.” Porque, “a força do Camões é, também, a força de uma comunidade de alunos, que passou por cá, e que marcou este tempo”.
De como se foi construindo o espírito da “comunidade camoniana”
“O Camões, como edifício, é o primeiro a ser construído para o efeito”. Obra do arquiteto Ventura Terra, “que traz consigo o know-how da exposição de 1900 de Paris”.
Pelo Camões - na altura, como o Pedro Nunes, um dos dois grandes liceus da cidade de Lisboa (e com a centralidade de algum modo adquirida com a construção das Avenidas Novas) – começa a desfilar “todo um conjunto de personalidades”. Por exemplo, “Mário Sá Carneiro, o primeiro a fazer uma reivindicação de um refeitório”. Vão ser professores no Camões intelectuais destacados como Aquilino Ribeiro, ou Rómulo de Carvalho. “Começa a surgir um conjunto de escritores, também marcante, sucedendo-se várias gerações”.
Um facto interessante: Rómulo de Carvalho, tendo sido professor de Jorge Sena, irá mais tarde enviar-lhe os seus poemas para lhe pedir a opinião. “Talvez isto também faça parte do espírito camoniano”.
O liceu vive uma disciplina rígida, sob a égide do reitor Sérvulo Correia (1950-1974). Havia falta de liberdade, a Mocidade Portuguesa tinha uma presença forte.
Mas é também no Camões que tem lugar a comício de Humberto Delgado. Também aqui surgiu a JOC. “Há um conjunto de ativistas. O próprio Mário Dionísio [professor na escola] chegou a acolher Álvaro Cunhal no tempo da sua clandestinidade”.
“Por um lado, os alunos tinham uma disciplina muito rígida. Por outro lado, havia um conjunto de professores que abriam os horizontes, abertos ao mundo”, salienta João Jaime.
Hoje, o Camões destaca-se, porque “tem uma personalidade própria”. “Isto teve a ver certamente também, no pós-25 de Abril, com lideranças fortes. A Eduarda Dionísio foi uma liderança forte aqui. O Mário Dionísio. As questões pedagógicas eram aqui discutidas.”
Neste momento “o Camões foi das poucas escolas que não agruparam”. “Hoje as escolas têm perdido as suas referências”, critica. “O Camões tentou sempre ter a sua identidade e não a perder”. E isso cria talvez um espaço acolhedor, à volta do Camões.
As lideranças não têm de ser unipessoais
“Se, por um lado, não tenho dúvidas de que não temos uma gestão democrática nas escolas, por outro não consigo deixar de pensar no que aconteceu nestes 50 anos!”, afirmou João Jaime, em entrevista à Revista Lusófona de Educação(1).
O modelo de gestão escolar, criado em 1974, estava “em consonância com os ideais de democracia, patente na colegialidade que preside à constituição dos órgãos de gestão e seu funcionamento”. Tais estruturas constituíram “uma primeira experiência da maior importância no processo de democratização do sistema escolar português”.
Hoje, como salientou João Jaime ao longo da nossa conversa, o modelo de gestão que impera nas escolas “peca por ser exclusivamente um modelo unipessoal”. O argumento é “que a escola precisa de alguém que seja o responsável, temos de responsabilizar alguém”.
“É evidente que as direções têm as suas lideranças”. Mas, salienta, “as lideranças não têm de ser unipessoais. A pessoa pode ter a liderança num órgão coletivo”.
O modelo unipessoal tem uma grande desvantagem, considera. “Se é unipessoal… não é necessário eu esforçar-me para poder tomar decisões…. Enquanto, nos colegiais, é preciso alguém esforçar-se para convencer os outros que esta é a posição democrática.”
“As lideranças existem pelas próprias pessoas”, defende. E elas podem existir, em órgãos coletivos, com mais força que nos unipessoais.
O modelo unipessoal é um “modelo pobre”. Pois “fica muito dependente da decisão do diretor. E torna as comunidades também pouco participativas. Porque o diretor é que decide tudo… E é desmotivante, até para a democracia”, frisa.
Numa nota final – polémica - João Jaime levanta ainda uma outra questão: “eu acho que é um erro, dos professores e das escolas, não considerar a necessidade da participação de pais e alunos no conselho pedagógico”.
E reforça: “Eu sinto que é importante a presença dos pais e dos alunos no conselho pedagógico. De outros pares. Porque nós conseguimos ter os pais do nosso lado, se eles perceberem as dificuldades que a escola tem. Se eles participarem nas reuniões do pedagógico, serão mais solidários – com a escola, que está a cair, mas também com projetos que estão a acontecer. E é trazendo-os para dentro que, muitas vezes, se consegue o seu apoio”. Em relação aos alunos, “isso é mais do que evidente – nós somos privilegiados porque isto é uma escola secundária e os alunos maioritariamente têm mais de 16 anos”.
A participação de representantes de pais e de alunos “é uma mais-valia para o modelo”, conclui.
(1) https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rleducacao/article/view/9582
Versão resumida publicada no «Escola/Informação Digital» n.º 44 | novembro/dezembro 2024