Artigo:A extraordinária «inovação» legislativa

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A extraordinária «inovação» legislativa

O decreto-lei nº 20-B/2023 que regula o apoio ao pagamento das rendas das famílias com uma taxa de esforço superior a 35% estipula que a base de cálculo para concedê-lo é «o total do rendimento para a determinação da taxa apurado pela Autoridade Tributária Aduaneira». Trata-se, por conseguinte, do rendimento coletável, ou seja, o rendimento apurado para a cobrança do IRS, rendimento a que foram deduzidas as contribuições para o regime geral Segurança Social e para a Caixa Geral das Aposentações.

Na semana passada o ministério das Finanças publicou um despacho interno que altera a base de cálculo claramente definida por aquele decreto. Segundo este despacho, já não será o rendimento coletável, mas o rendimento bruto que determinará a elegibilidade do arrendatário para a concessão do apoio. Como este rendimento é maior do que o rendimento coletável, o número de famílias elegíveis para este apoio reduzir-se-á consideravelmente, num momento em que, apesar do aumento dos juros, o preço das casas aumentou 8,7% no primeiro trimestre relativamente ao trimestre homólogo do ano passado, enquanto o número de vendas caiu mais de 20% em termos homólogos. Em contrapartida, na Alemanha, o preço das casas caiu 6,7% também em termos homólogos em consequência da desaceleração da procura. Vivemos realmente, em Portugal, em pleno reino do absurdo.

Ficará para memória futura esta extraordinária «inovação» legislativa em que um despacho altera de raiz um decreto que se situa na hierarquia legislativa num plano superior. Sim, repito, não se trata de complementar, mas de alterar profundamente o que foi estabelecido pelo decreto-lei nº 20-B/2023. Esta semana no conjunto de propostas de alteração do pacote legislativo «Mais Habitação», estipula-se que o rendimento anual para a atribuição do subsídio passa ser o que é estabelecido pelo despacho interno do ministério das Finanças, ou seja, o que confirma tout court, na prática, que um despacho pode alterar, se não mesmo, revogar um decreto. Se esta extraordinária «inovação» legislativa ganhar asas cria-se um precedente jurídico de consequências imprevisíveis. Porém, o Governo ainda tem tempo para rever esta decisão não apenas inaceitável em termos sociais, mas também de duvidosa legalidade jurídica.

Entretanto, o Executivo pretende restringir outras medidas na sua nova versão do Pacote legislativo «Mais Habitação». Assim, o arrendamento coercivo desencadear-se-á apenas a título excecional, o que significa que inúmeros edifícios, alguns dos quais propriedade de fundos imobiliários, permanecerão desabitados e degradados, na expetativa de um aumento especulativo de preços; a taxa de compensação extraordinária do alojamento local passará de 20% para 15%; a interdição do alojamento local em edifícios destinados à habitação passará de metade da permilagem para «pelo menos dois terços». Estas medidas revelam uma enorme falta de coragem política para enfrentar os «lobbies» da propriedade imobiliária a que se junta o dogma das «contas certas» que serve sempre de pretexto para «poupar» nos apoios sociais.

Entretanto, inúmeras famílias desesperam para encontrar em Lisboa uma casa em condições que possam pagar, inúmeros imigrantes, que garantem com o seu trabalho precário e mal pago o funcionamento de inúmeras atividades económicas desta cidade cada vez mais submetida à monocultura do turismo, vivem em condições de grande precariedade habitacional, como sublinhou justamente Albertina Pena, a toxicodependência tem aumentado consideravelmente, facto a que não é estranho a impossibilidade de alugar quartos que são reservados pelo alojamento de curta duração para turistas, e os bairros de barracas e casas abarracadas retornam em força nos arredores da cidade de Lisboa. É o retorno ao passado segundo uma nova versão: não se pretende construir uma cidade à medida do cidadão, mas à medida da especulação imobiliária e do turismo low cost.

Joaquim Jorge Veiguinha