25 de Abril – estrofes para um hino
Ano de 1974 -Decorria o mês de Abril, como sempre… vazio de esperanças, monótono, cinzento.
Aquela manhã seria igual à do dia anterior, não fosse o ecoar pelos atalhos e caminhos de um repicar de sinos feito de palavras diferentes –liberdade… grilhões quebrados… um mundo novo que nascia.
Foi este o máximo encanto, a fincada esperança em terra que não se esboroaria, a alegria de assistir à derrocada dos tiranos.
E o dia foi longo na espera de ver partir os sinistros rostos que nos oprimiram, os jovens abraçados, saudar as Forças Armadas, de cravos rubros nas espingardas, cantar em uníssono “Grândola, Vila Morena, terra da fraternidade. ”Era um país diferente.
Cinquenta anos depois celebramos este dia como cidadãos livres, professores, sindicalistas num sindicato que está na génese dessa madrugada, formado com a vontade de partilhamos saberes, exigirmos direitos, potenciar a função docente, a união entre todos nós.
Cinquenta anos depois interrogamo-nos, também - como se define a liberdade? Em que olhos habita e como cresceu esta menina que o MFA nos ofereceu naquele dia? Em que fios da meada se enredou a memória que nos devolve imagens intactas de rostos decididos e, também de rostos sem máscara que ao longo do caminho foram perdendo ilusões, vivendo desavenças e desfazendo contradições? Mesmo assim, entoamos e entoaremos sempre, a Grândola, com o ânimo inicial de uma terra da fraternidade onde “o povo é quem mais ordena”, mas não podemos deixar de escutar em surdina o tom magoado das palavras de Natália Correia, um pesado lamento sobre futuros adiados, promessas por cumprir, entoadas pela voz poderosa de José Mário Branco. “Dão-nos um lírio e um canivete/ e uma alma para ir à escola/ mais um letreiro que promete/ raízes, hastes e corola”.
Cinquenta anos depois revemos paisagens de assombro onde decorriam as nossas vidas libertas de amarras, fazendo crescer homens livres, educando-os nos valores e nos ideais de uma humanidade que construía a democracia verdadeira, a igualdade entre os homens fosse qual fosse a origem, a cor, a língua mãe.
Destruímos muros que nos impediam de correr, criámos comissões de igualdade, cooperativas de moradores, de agricultores, sindicatos que nos uniam e proclamávamos direitos nunca dantes adquiridos. Zelávamos por melhores condições nas escolas, mesmo que tivéssemos de enfrentar má vontade e mal querer. Assim conseguimos um refeitório e uma cozinha para os alunos, que o MEC não comprara ao colégio que adquirira para a nova escola preparatória. Todos sabíamos (ou assim julgávamos) gerir uma assembleia, opor-nos aos nossos adversários que usavam a estratégia da aranha e nos confundiam na teia tecida devagarinho. Mas nós não desistiamos. Saíamos sempre para a rua, como “a Tuna do Zé Jacinto tocando a marcha Almadanim, cantando a marcha Almadanim.”
Cinquenta anos depois, ó meus amigos já grisalhos, cansados, como é bom vermo-nos sem termos desistido e somando experiências do quanto aprendemos, mesmo errando, por vezes, nas parcelas manhosas das contas de somar, apinhadas de números. Aprendemos como uma escola é um pequeno mundo mas complexo, que espelha o universo e nós nada ou pouco sabíamos dessa tessitura dramática.
Aprendemos a ensinar de modo diferente, a escolher o jeito e o sorriso adequado mesmo tristes por dentro, aprendemos e ensinámos que a escola não é uma forma geométrica com paredes e telhado, que o leito do rio, o solo arenoso, as pedras do caminho também são para conhecer, que os castelos não são nem nunca foram intransponíveis, que aqueles que acarretaram as pedras foram heróis do quotidiano, que somos uma cadeia e todos os elos se entrelaçam, que juntos fazemos um país. Aprendemos e ensinámos que a cooperação é a pedra basilar da nossa existência. Visitámos cooperativas agrícolas, aldeias piscatórias de casas assentes em palafitas, que ainda existiam, barcos de mulheres ao leme que depois amanhavam o peixe que era vendido ou trocado pela taleiga com legumes que o vizinho amanhou num resquício de terra. Produzíamos textos e imagens a apelar à defesa do rio Tejo que corria assoreado, lá em baixo. aos pés da nossa escola. Era o rio mais belo de todos os rios e nós queríamos-lhe muito.
Visitávamos as muralha e assinalávamos as fendas, as fissuras, as rugas do tempo que as tem consumido, os claustros de S. Francisco, essa “bela ruína” no dizer de Garret, que, desta feita, foi salva quanto pôde, e tantos outros testemunhos da nossa história que arriscava perder a memória. Tantas coisas que juntos descobríamos e denunciávamos, como também o fazíamos enquanto docentes injustiçados, fazendo greves, manifestações, desfiles de bandeiras em riste, exigindo, exigindo, cerrando os dentes e ciciando “ eu vim de longe, de muito longe… o que eu andei para aqui chegar.”
Comemorámos sempre, queridos alunos e camaradas, o dia 25 de Abril, nesta cidade da qual saiu a coluna militar de Fernando Salgueiro Maia, a caminho de Lisboa, regressando vitoriosa e incólume. Por este fato e outras razões vos contei sempre esta história de um dia épico, dia em que depositávamos cravos rubros a seus pés fingidos no bronze da estátua que se ergue junto ao Chaimite, aquela imagem de corpo hirto, rosto triste, em tudo contrária ao Ser Humano que que era e tão cedo nos deixou.
Por tudo isto, ainda hoje, dorida e enrugada, curvada ao peso do cansaço, vos reafirmo, meus amigos e camaradas de cinquenta anos de história vivida na comunidade, na escola, no nosso sindicato - O SPGL - quero continuar a aprender, a estar atenta, a intervir como puder, de peito aberto a este luminoso DIA o dia 25 de ABRIL de 1974
Everilde Maria de Oliveira Pires