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100-80-100

Não, não se trata de moda nem tão-pouco do cânone da Vénus de Willendorf: à regra 8-8-8 que o galês Robert Owen, reformista social e socialista utópico, instituiu na sua fábrica de lanifícios, no século XIX (8 horas para dormir, 8 horas para trabalhar e 8 horas para o lazer), o consultor e filantropo inglês Andrew Barnes contrapôs na sua empresa sedeada na Nova Zelândia, em 2018, a regra de 100% do salário para 80% do tempo laboral e 100% da produtividade, inventando assim a semana de quatro dias.

Da labuta de sol a sol nos campos e da jornada de 14 a 16 horas nas fábricas às 40 ou 35 horas semanais de hoje, vão mais de dois séculos de difíceis e por vezes sangrentas lutas dos movimentos operários e sindicais. Os governos nunca concederem nada espontaneamente é desde sempre a triste tradição, mesmo em regimes democráticos. Espontaneamente, os governos apenas tiram, reduzem salários, anulam direitos, aumentam impostos. Por isso é tão estranha esta proposta do governo português, seguindo o exemplo de outros países, de generalizar a experiência de Barnes. Governos a propor menos um dia de trabalho por semana pelo mesmo dinheiro? Estranho.

É certo que propor assim é fácil, pois impõe-se que haja redução de horas de trabalho semanal sem redução de salário, mas que a experiência seja voluntária, só em empresas privadas e sem apoio financeiro do Estado. O Estado apenas oferece apoio técnico às empresas aderentes.

Quando se analisa o regulamento apresentado aos patrões, verifica-se que a ideia de Barnes fica um tanto ou quanto esbatida. Uma vez que o Estado não oferece nenhuma contrapartida financeira, cada patrão reduz o número de horas semanais que lhe aprouver, teoricamente estipuladas de acordo com os trabalhadores, que poderão ser apenas de alguns sectores ou departamentos da empresa. Esta experiência decorrerá durante seis meses, a partir de Junho de 2023, e depois logo se verá.

E logo se verá através do tal apoio técnico do Estado, que quererá (sic) «medir os efeitos no bem-estar, qualidade de vida, saúde mental e saúde física dos trabalhadores, bem como o seu nível de compromisso com a empresa, satisfação com o trabalho e intenção de permanecer na organização». O apoio técnico do Estado também quererá saber (sic) «onde e como é usado o tempo não-trabalhado»…

Da parte dos patrões, que querem sempre mais por menos dinheiro, será irresistível instar os trabalhadores “aderentes voluntários” à compensação das horas não cumpridas na empresa com trabalho extra em casa. Pelo que já se viu, nenhum patrão parece interessado no modelo 100-80-100. Pagar o mesmo por menos um dia inteiro de trabalho? Isso é que era bom. Mas há criatividade em definir variantes, desde a redução de só um dia por mês à compensação do dia semanal a menos com uma ou duas horas a mais em cada um dos quatro dias de trabalho, estilhaçando num ápice o modelo 8-8-8 de Owen, cuja generalização foi tão duramente conseguida.

Quanto à semana de quatro dias, dificilmente se evitará que a bondade da ideia do filantropo Barnes redunde numa ainda maior intromissão do trabalho na esfera privada e familiar. Só não se percebeu até agora qual é o intuito dos governos.

Francisco Martins da Silva