Artigo:Um dialogismo fecundo

Pastas / Informação / Opinião

Paulo Sucena «Um dialogismo fecundo», texto proferido em 17 de janeiro de 2015, por ocasião da entrega a Manuel Gusmão do Prémio Literário António Gedeão, que galardoou uma obra de poesia em português de um escritor simultaneamente professor.

Um dialogismo fecundo

Paulo Sucena

O último livro de poesia de Manuel Gusmão é constituído por cinco segmentos, “O Caderno das Paisagens”, “Os Desenhos do Escultor ou Notas sobre o Trabalho da Inspiração” (um poema em memória do Jorge Vieira), “No Labirinto das Imagens”, “Filmar o Vento”, “A Pintura Corpo a Corpo”.

1. O livro justifica plenamente o título, porque nele se aborda, desenvolve, aprofunda em cada poema, na sua forma breve mas “tratada”, cuidada, cinzelada, aspectos, configurações, aparências, coisas, imagens do mundo e da arte, com recurso a figuras de retórica, de sentido, de sintaxe. Este livro é portanto um Pequeno Tratado das Figuras que comprova, como diria o ensaísta Manuel Gusmão, que “no seu sentido perpétuo, a poesia inventa e reinventa a sua origem ou o seu modo de chegar” e que nós “em alguma medida, somos feitos e desfeitos pelo poieín das artes (…) pelas esculturas em que tacteamos o desabamento e o voo do mundo”.

A poesia de Manuel Gusmão é normalmente de uma grande densidade cultural e percorrida por uma intensa intertextualidade e não foi por acaso que recorri a esta última citação, mas porque à medida que ia lendo o livro pressentia que sob os poemas de Pequeno Tratado das Figuras repercutia a frase de Walter Benjamin: “nós habitamos o mundo e o mundo é a nossa tarefa”.

Na verdade, é o mundo que o sujeito poético deste livro pretende recompor, tacteando, como o escultor, o desabamento e o voo do mundo ou aprimorando o olhar com as pinturas para melhor discernir sobre a realidade visível. A voz que anima os poemas de Pequeno Tratado das Figuras mostra como a arte se apropria do mundo, isto é, como partindo das coisas do mundo é capaz de as transformar e produzir coisas outras, enquanto o artista a ele próprio se vai transformando. Com o pensamento de Edmund Husserl por trás, avanço que o artista surge nestes poemas como uma coesa unidade de multiplicidades que fluem, coisificadas em objectos de arte.

Devo acrescentar que, neste livro, Manuel Gusmão realiza uma magnífica transformação das imagens que o olhar apreende num corpo esplêndido de palavras, escoradas na cromaticidade e música do mundo, e produzidas por um poeta profundamente jogado, à maneira de Rimbaud, na interioridade do poema, sua âncora na vida e no tempo, essa eternidade em movimento. O poema é a chave que abre e desvela o mundo por meio de uma estrénua imbricação de linguagens. Diria, de outro modo, que o mundo escreve-se e o poeta reescreve a escrita do mundo.

2.Em o Pequeno Tratado das Figuras o espaço e o tempo semantizam-se pelo movimento dos humanos, impulsionado por “um pequeno caos ordenado”, “do lado esquerdo”, e pelas “folhas azuis dos olivais cujas sombras / o rio da pré-história consigo move”.

Esse mundo, de multiformes mundos construído, é percorrido por uma melodia dissonante que Manuel Gusmão explicita, com o contributo do título de um dos poemas mais representativos de um riquíssimo veio da poesia de Camilo Pessanha, (“Branco e Vermelho”) deste modo muito belo:

: a música do mundo [vive]

presa na haste viva que o poema

hasteia branca e vermelha

O poema assume-se também como uma representação da natureza transmudada para a materialidade da linguagem que se confronta com o que as “árvores memoriosas dizem na sua voz de água”, árvores que são “Guardiãs das cores e dos tons, do rumor das ramas / e da lenha ardendo, dos ciscos e das cinzas”. Árvores que sendo memoriosas são uma ampla sinédoque, porque elas são muito mais do que guardiãs das cores e dos tons e do rumor das ramas e da lenha ardendo. Podemos imaginá-las até como interlocutoras dos quatro elementos, porém o poeta diz-nos que nessa memória também moram ciscos e cinzas, um quase nada. Do esplendor aos restos ou a poesia de Manuel Gusmão a respirar entre a infinitude e a finitude.

3. De outro ângulo, que abre perspectivas extremamente fecundas, Manuel Gusmão oferece-nos um “poema rouco e doente”, não só, creio eu, por razões concernentes ao contexto em que opera a instância enunciadora, mas também porque ao sujeito da enunciação lhe chega “o áspero rumor distante da máquina / do mundo”.

Uma melancolia de azebre, belíssima por tão amarga e tão serena, perpassa pelo Pequeno Tratado das Figuras, configurando crepuscularmente e de modos diversos uma despedida do mundo, como nestes versos:

            estas árvores erguem-se para os céus, aos pés do

            teu corpo [que se desmorona]

            desmoronado.

            (…)

            Prometem a tua morte aos longos e inusitados

            ciclos da terra.

Ou nestes:

            Saberás agora que o animal, nos versos

            enredado, é a tua cabeça dançando, tropeçando

            e caindo, poema rouco e doente?

Ou ainda nesta recriação de um célebre poema de Sá de Miranda:

            Decai com a tarde a luz

            caem co’a calma as colinas breves

                               ; caem com as folhas

            como caíam aquelas árvores que até hoje

            caem de poema em poema.

Como nos de Jorge de Sena, de Ruy Belo, de Luiza Neto Jorge e de Gastão Cruz que revisitaram, antes de Manuel Gusmão, o poema de Sá de Miranda.

A poesia é, como muito bem disse o ensaísta Manuel Gusmão, um perpetuum mobile que o poeta Manuel Gusmão reitera uma vez mais num poema dedicado a Jorge Vieira:

            Há, tu sabes, várias maneiras de começar.

 Caminhando sobre “a pedregosa luz da poesia”, como diria Carlos de Oliveira, chegamos aos últimos segmentos do Pequeno Tratado das Figuras que lançam raízes na arte das imagens e das cores e na da matéria moldável ou modelável, em que os artistas, artesãos do mundo, a si mesmos se constroem erguendo um mundo outro – o da linguagem, com a qual e pela qual alcançaremos a substância última sobre que repousa este livro. Ela passa pela “antiquíssima arte do diálogo” e pelo modo como o poeta se diz, interrogando os outros “humanos agora antigos”:

Que diríeis de nós?

            Poderíamos nós originar um poema

            Que fosse vosso e vos servisse

            De fala para uma emoção, um afecto

            Que vos afeiçoasse a vida

            E a paisagem?

           

            OU só vos conseguimos dizer

            A miséria e a doença

            O vendaval da destruição

            A glória vã deste triste mando

            Que da sua humanidade desabita o humano.

Esse dizer-se não é apenas ontológico é também axiológico porque, como dizia Sartre, ser é fazer e fazer fazendo-se o que implica que a relação concreta com o valor se estabelece na acção cuja primeira condição é a liberdade. Por ela passa o abolir de fronteiras do eu, porque, e seguindo o pensamento de Sartre, ao dizermos que cada um dos humanos se escolhe a si próprio também queremos dizer que ao escolher-se a si próprio ele escolhe todos os humanos, o que significa que todo o projecto por mais individual que seja tem um valor universal. Creio que isso também ressuma do poema final desta magnífica obra.

O Pequeno Tratado das Figuras é um livro que nos desafia a cada passo da sua leitura, nos interroga, nos comove, nos implica sem precisar de se explicar, nos incita a reescrevê-lo uma vez e outra vez. Esse é o timbre da poesia de um admirável poeta chamado Manuel Gusmão.

Lisboa, 17 de Janeiro de 2015.