Artigo:Reproduzindo a academia neoliberalizada através da precarização dos seus trabalhadores

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Reproduzindo a academia neoliberalizada através da precarização dos seus trabalhadores

 

Ana Ferreira
| Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH); Dirigente do SPGL e da FENPROF; aferreira@fcsh.unl.pt |

Resumo

Uma das formas de reprodução da academia neoliberalizada - caracterizada por uma concentração do Poder, uma instrumentalização do conhecimento e a institucionalização de uma cultura assente numa competição desmedida (Ball, 2015) - é a presença de uma extensa precarização dos seus trabalhadores. Em Portugal, esta situação atravessa todas as funções académicas; todas as qualificações e todos os estágios das trajectórias laborais. Os impactos da transversalidade da precariedade académica fazem-se sentir aos mais diversos níveis: numa reprodução de desigualdades estruturais; em longas jornadas de trabalho e num adiar dos planos de vida para além do trabalho; na saúde física e mental dos académicos precarizados e num regime de competição exacerbada e permanente, que favorece uma produção voraz de menor qualidade e a construção de um ambiente propício a pressões de superiores hierárquicos e assédio. Este texto concluirá que uma academia precária promotora da reprodução das suas condições estruturais, afecta profundamente as vidas dos seus trabalhadores e, colocando em causa o desenvolvimento de um ensino e de uma ciência reflexiva, dificilmente poderá contribuir de forma consequente para a construção de sociedades mais democráticas e inclusivas, e menos desiguais.

 

Os grandes números da precariedade

De acordo com o Observatório do Emprego Científico e Docente, dos 6719 contratos estabelecidos com doutorados para funções de investigação científica, de desenvolvimento tecnológico, de gestão e de comunicação de ciência e tecnologia após o início de 2017, isto é, após a aplicação de um conjunto de iniciativas legislativas de combate directo à precariedade (i.e., Programa de regularização dos vínculos precários na administração pública, PREVPAP) e de apoio ao Emprego Científico (i.e., Programa de estímulo ao emprego científico), foram integrados permanentemente 221 doutorados através de concursos regulares para a carreira investigação; 308 doutorados através do PREVPAP e 156 doutorados através de outros mecanismos permanentes, números que englobam, nos dois últimos casos, integrações nas carreiras docentes e de investigação(1). Daqui resulta que mais de 90% de todos os contratos de trabalho estabelecidos a partir de 2017 com investigadores doutorados são precários. A estes números somam-se os números de trabalhadores científicos não doutorados; de trabalhadores com bolsas pós-doutorais e de todos os que continuam a trabalhar sem rendimentos associados.

Entre os docentes a situação é igualmente preocupante: de acordo a Direção-geral de Estatísticas da Educação e Ciência, no ano lectivo de 2020/2021, há uma maior prevalência de contratos precários (52%), em larga medida contratos a tempo parcial, do que de contratos permanentes (46%)(2).

Se é possível aceder a este quadro geral através dos instrumentos nacionais que analisam os grandes números do emprego científico e docente, até recentemente, desconheciam-se as características específicas desta população e do trabalho que desenvolve, assim como os sentidos que estes trabalhadores precarizados atribuem ao seu trabalho e à sua relação como esse mesmo trabalho. O livro «Nós Somos os Rankings». Precariedade, Reflexividade e Acção social, publicado recentemente pela Almedina (Ferreira, 2023), pretende colmatar essas lacunas. As grandes linhas que decorrem da análise sociológica empreendida serão seguidamente apresentadas.

 

Os trabalhadores académicos precarizados

A aplicação de um inquérito por questionário a trabalhadores académicos precarizados revela a transversalidade desta situação laboral, uma situação que abrange todas as actividades académicas - investigação, docência, gestão de ciência e actividades próximas; a feminização desta condição (64%), mas a exclusão das mulheres das categorias superiores das trajectórias; idades compreendidas entre os 21 e os 68 anos (idade média de 38 anos), atingindo toda a extensão do período laboral; e a presença de dependentes em 49% dos casos analisados. As trajectórias laborais descritas intercalam, desordenadamente, vínculos precários e períodos sem rendimentos, uma característica que contribui para excluir deste sector todos os que não tenham redes sociais que os apoiem na ausência de rendimentos. No seu conjunto, estas características contribuem para reproduzir as assimetrias estruturais que o ensino superior pretenderia esbater e combater.

Adicionalmente, e dada a extensão da situação laboral precária, estes académicos alongam as suas jornadas laborais (entre os investigadores doutorados, 64% trabalha em média mais do que 40 horas semanais, e 17% mais do que 50 horas) e aceleram os ritmos de trabalho. Se estas características se traduzem numa produção em larga escala, percepcionada, pelos próprios, como de menor qualidade (entre os investigadores doutorados, mais de 69% produziu entre 1 e 4 artigos indexados no ano anterior, e 26% publicou 5 ou mais artigos indexados), elas também se traduzem em dificuldades acrescidas de conjugação da vida profissional com a vida pessoal, e numa debilitação da saúde física e mental. Paralelamente, cria-se um ambiente onde a democracia institucional e a liberdade académica se encontram coartadas e onde medram pressões de superiores hierárquicos e situações de assédio. Face à possibilidade efectiva de desemprego, reproduzem-se as estruturas da academia neoliberalizada através das práticas laborais dos académicos precarizados.

Por oposição à relatada homogeneidade prática, estes trabalhadores revelam uma heterogeneidade dos sentidos críticos que atribuem ao seu trabalho, às suas trajectórias e ao sistema científico e tecnológico. Esta heterogeneidade pode resumir-se em dois grandes grupos. Um primeiro, composto por aqueles cujos processos reflexivos também reproduzem a academia neoliberalizada: seja através de uma projecção de uma necessidade de aprofundamento da competitividade meritocrática; seja discorrendo acerca de uma necessidade de reformas pontuais para pôr cobro a ineficiências organizacionais, seja através de um ajustamento às medidas do campo. Um segundo grupo, apresenta perfis de transformação. Enquanto alguns académicos projectam potenciais trajectórias de mudança individual – ou através do abandono da academia ou de processos migratórios –  outros aproximam-se dos discursos dos movimentos sindicais e associativos, mobilizando a precariedade laboral como dispositivo de organização para uma transformação colectiva. Estando a generalidade das vivências destes trabalhadores arredadas de uma participação cívica mais alargada e de uma participação democrática nas suas instituições, as suas narrativas aparentam aproximar-se mais de formas de gestão de tensões, do que se constituir enquanto instigadoras de uma agência transformadora das raízes estruturais da precarização numa academia hierarquizada e de Poder centralizado, instrumentalizadora do conhecimento e altamente competitiva. Presos no que sentem como imperativos para a sua sobrevivência na academia, reproduzem, com diferentes graus de convicção, as condições estruturais que os mantêm na posição fragilizada e de dependência em que se encontram.

 

Um outro caminho para o ensino superior e para a ciência

Num momento em que se aproxima o final de muitos dos mais de 3500 contratos a prazo para doutorados actualmente em curso, e em que as actuais propostas governativas não permitem nem resolver definitivamente o problema da precariedade no sector, nem resolver as decorrências dessa precarização, é essencial encontrar formas de ultrapassar um regime de precariedade transversal reprodutor de uma academia neoliberalizada com repercussões graves não só para os seus trabalhadores, mas também para si própria e para a sociedade em que se insere. As actividades de ensino, de investigação, de gestão de ciência e outras actividades próximas, são funções públicas essenciais ao desenvolvimento de um sector onde se possa ensinar e investigar em liberdade, onde a democracia institucional permita a construção de uma academia de todos e para todos. Só uma academia assente nestes princípios, uma academia que garanta condições dignas de trabalho aos que nela laboram pode promover a construção de sociedades mais democráticas e inclusivas, e menos desiguais. 

 

Referências

(1) Ball, S. J. (2015). Living the neo-liberal university. European Journal of Education, 50(3), 258-261.
(2) Ferreira, A. (2023). «Nós somos os rankings!» Precariedade, reflexividade e acção social na academia neoliberalizada. Coimbra: Almedina.

A autora escreve segundo o anterior acordo ortográfico.

Texto original publicado no Escola/Informação n.º 305 | Setembro 2023