Artigo:Emílio Costa, autor da primeira biografia portuguesa de Karl Marx, in ESQUERDA.net de 16/07/2023

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Emílio Costa, autor da primeira biografia portuguesa de Karl Marx

Anarquista, resistente antifascista, jornalista, colaborador de vários jornais e revistas como a Seara Nova, o República e O Diabo, secretário do criador do movimento Escola Moderna, professor e tradutor e escritor, Emílio Costa é um exemplo do relevante contributo anarquista para a cultura portuguesa. Por Luís Carvalho.

Emílio Costa.
Emílio Costa.

Era um professor anarquista alentejano.

Foi ele o autor da primeira biografia portuguesa de Karl Marx, publicada em 1930.

Chamava-se Emílio Costa. E viria a salientar-se na resistência à ditadura de Salazar. Foi um elemento ativo da revista Seara Nova, dos jornais República e O Diabo, e do Movimento de Unidade Democrática (MUD).

Segundo nos conta Carlos Brito, “a figura de Emílio Costa era muito respeitada entre a juventude do MUD Juvenil, do meu tempo. Anos 40 e 50. Não só como figura antifascista, mas como «intelectual avançado»”.1

Mas, antes disso, já ele tinha um longo percurso militante. No que descrevia como “um esforço desinteressado na propaganda de ideias em favor dos oprimidos, dos pobres, da justiça que lhes é devida”.2

Preso político sob a monarquia

Emílio Costa nasceu na cidade de Portalegre, a 21 de Fevereiro de 1877.

Tinha 20 anos de idade quando foi preso político.

Passou 20 dias encarcerado na antiga Cadeia do Limoeiro.

Qual o ‘crime’ que cometeu? Ser um dos responsáveis de um jornal republicano que foi processado e apreendido, pelas autoridades da monarquia ‘liberal’.3

Teve então como advogado de defesa um futuro presidente da República, Manuel de Arriaga.4

Terá sido por essa época que Emílio Costa aderiu à maçonaria. Na qual esteve ligado a Artur Luz de Almeida, que seria um dos principais organizadores da revolução republicana de 5 de Outubro de 1910.5

O futuro biógrafo de Marx continuaria a colaborar com a causa republicana até se dar essa revolução. Mas cedo assumiu um ideal mais avançado: o socialismo, na sua variante anarquista.

Emílio Costa caracterizaria o socialismo, “na mais ampla acepção da palavra”, como um ideal “em que a liberdade inalienável do indivíduo, se conjuga harmoniosamente com as vantagens da vida solidária entre os homens”.6

E que “tende, em última instância, à abolição do Estado”.7

Aluno de Reclus, em Bruxelas

Uma marca no percurso de Emílio Costa foi a sua vivência internacional.

Era já um jovem anarquista quando saiu de Portugal rumo à Bélgica, onde viveu alguns anos e estudou na Universidade Nova de Bruxelas. Naquele país foi aluno de um dos mais importantes pensadores anarquistas da época, o geógrafo Elisée Reclus.8

Frequentou a Casa do Povo de Bruxelas, grande edifício associativo, construído de raiz por iniciativa do Partido Operário Belga. Um edifício que serviu de inspiração, em Portugal, para as sedes da sociedade A Voz do Operário e da Cooperativa do Povo Portuense.

Naquela casa, Emílio Costa assistiu ao vivo, pela primeira vez, a um discurso de Jean Jaurès, carismático socialista francês e fundador do jornal Humanité.9

Mas, à semelhança de Karl Marx, Emílio acabaria por ser expulso da Bélgica.10

Secretário de Ferrer, em Paris

Depois da Bélgica, partiu para França, onde viveu algum tempo em Paris. E ali se tornou colaborador de um importante jornal anarquista, Les Temps Nouveaux. À frente da redação estava outra grande referência dessa corrente ideológica: o sapateiro Jean Grave.

Em Paris, Emílio Costa chegou a ser secretário do pedagogo catalão Francesc Ferrer. O fundador da “escola moderna” e mais um vulto proeminente do anarquismo. Que por sinal acabaria fuzilado pelas autoridades espanholas, em 1909.

Como colaborador de Ferrer, Emílio conheceu pessoalmente grandes intelectuais progressistas da época, como o sociólogo Max Nordau e o antigo deputado republicano francês Alfred Naquet, um grande promotor do direito ao divórcio.

Ainda em Paris, trabalhou ainda na administração do jornal diário La Révolution, dirigido por Émile Pouget, um expoente do sindicalismo revolucionário, de índole anarquista.

Referência sindical

Essa era precisamente a concepção que iria predominar na central sindical portuguesa UON/CGT (União Operária Nacional/Confederação Geral do Trabalho). E Emílio Costa seria um dos seus grandes divulgadores entre nós, com três livros que traduziu: Ação Sindicalista, de Victor Griffeulhes; A Confederação Geral do Trabalho, de Émile Pouget; e Sindicalismo e Socialismo, de Hubert Lagardelle (e outros).

Um traço central a salientar na biografia de Emílio Costa é aliás que ele foi, no seu tempo, uma das grandes referências intelectuais do sindicalismo em Portugal.

Além das traduções, foram inúmeras as conferências que proferiu em sindicatos, cooperativas, outras associações operárias, e na Universidade Popular Portuguesa.

Imensos foram os seus artigos na imprensa sindical, por exemplo no diário A Batalha, órgão da UON/CGT.

E teve ainda uma participação direta ativa no sindicato «Associação dos Professores de Portugal».

Ofícios…

A nível profissional, Emílio Costa lecionou no que são hoje as escolas secundárias Passos Manuel e Rainha D. Amélia, em Lisboa, e Mouzinho da Silveira, em Portalegre.

Foi diretor escolar na sociedade A Voz do Operário, trabalhou muitos anos no Instituto de Orientação Profissional.

Aquando da implantação da República, em 1910, era jornalista do diário O Século. Ofício que exerceu noutros jornais, inclusive no Diário Notícias.11

e livros

No campo editorial, Emílio Costa publicou vários livros de sua autoria. Com reflexões sobre temas como As mulheres e o feminismo (1929), Ascensão, poderio e decadência da Burguesia (1939) e Cooperativismo (1946).

Escreveu um volume para a «Biblioteca Cosmos» dirigida por Bento Jesus Caraça: sobre Aspectos sociais da Orientação Profissional (1942).

Além da biografia de Karl Marx, publicou duas outras, de Jean Jaurès (1931) e de Elisée Reclus (1934). Escreveu mais uma, de Lenine, “mas cuja publicação não foi permitida”, no contexto da ditadura de Salazar.12

Anarquistas em Portugal

A vida de Emílio Costa terminou no dia 17 de Julho de 1952, em Lisboa. Aos 75 anos de idade.

Um ano depois foi homenageado com um número duplo inteiramente dedicado à sua memória, pela revista Seara Nova.13

Como nota final neste apontamento, sublinhamos que Emílio Costa é um exemplo do relevante contributo anarquista para a cultura portuguesa, na primeira metade do século XX.

Ao lado de insignes pedagogos como Adolfo Lima e César Porto, e de jornalistas notáveis como Jaime Brasil e Cristiano Lima.

E é também exemplo dos anarquistas que neste país cultivaram o estudo da obra de Karl Marx. Nomes como Manuel da Silva Mendes, João Campos Lima e Faustino Bretes.

Num próximo artigo, abordaremos a leitura que Emílio Costa fez do marxismo.


Notas:

1 Email ao autor, 30/06/2023

2 Emílio Costa (1953), “Resumo da minha vida”, Seara Nova, 17/07/1953, p.67

3 ibidem, p. 67-8.

4 António Ventura (1994), Entre a República e a Acracia - o pensamento e a acção de Emílio Costa, Lisboa: Edições Colibri, p.62.

5 Emílio Costa (1953), p.71; Ventura (1994), p.64.

6 Emílio Costa (1931), Jean Jaurès, Lisboa: Livraria Peninsular Editora, p.58.

7 Emílio Costa (1930b), Karl Marx, Lisboa: Livraria Peninsular Editora, p.146.

8 Emílio Costa (1930a), “Elisée Reclus - recordando”, Seara Nova, 20/02/1930, p.131.

9 Emílio Costa (1931), Jean Jaurès, Lisboa: Livraria Peninsular Editora, p.7.

10 ibidem, p.70.

11Emílio Costa (1953), p.68.

12 ibidem, p.70.