Artigo:Há muito a repensar, Carvalho da Silva in JN 25/06/2017

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Há muito a repensar

Portugal precisa e pode encetar um rumo seguro de desenvolvimento. Em primeiro lugar, se não nos iludirmos com positivos resultados conjunturais alcançados, uns em resultado de medidas políticas acertadas, outros por meros efeitos de conjuntura externa ou interna que a qualquer momento podem alterar-se, como é o caso das políticas do BCE, ou das modas no turismo; em segundo, encarando com verdade e determinação bloqueios acumulados ao longo de décadas e tratando o "lixo" atirado para debaixo do tapete por governos do "arco da governação", como é o caso de grandes questões do ordenamento territorial e florestal; em terceiro, promovendo debate político aberto e frontal entre todas as forças sobre cada um desses bloqueios e sobre soluções - com participação efetiva dos cidadãos e de organizações e instituições representativas, em vez de solicitações a "entidades independentes" - evitando consensos de fachada que, nas mais diversas áreas e tempos, têm demonstrado servir para iludir os cidadãos e alimentar o centrão de negócios e interesses.

Por vezes são as tragédias que forçam a resolução de problemas durante muitos anos descuidados. Isso pode acontecer agora com os incêndios na Região Centro. Nos últimos dias ouvimos opiniões, muitas delas bem informadas ou simplesmente sensatas, e discutimos causas e soluções. Desse debate parecem emergir pelo menos duas conclusões: i) os incêndios florestais não podem ser evitados nem minimizados se todo o esforço for posto do lado do combate ao fogo; ii) uma floresta que não é cuidada é uma floresta que arde ciclicamente.

Essas duas conclusões, aparentemente consensuais, podem esconder interesses muito divergentes. Da mesma forma que as populações têm interesses literalmente vitais no ordenamento do território e na prevenção dos incêndios, também o mundo da finança, que se gaba de capacidade de transformar grandes problemas em grandes oportunidades, tem não só interesses como uma estratégia para a floresta, utilizando, por exemplo, a constituição de fundos de investimento imobiliário. Como princípio, é aceitável dizer que "são preferíveis os fundos ao abandono e ao fogo". Mas haja cuidado, pois entre o fogo e os fundos pode existir uma semelhança perturbadora: os incêndios privam de rendimento e de riqueza as populações dos territórios em causa, pela destruição das chamas; os fundos podem ter o mesmo efeito pelo desvio dos rendimentos gerados nesses territórios, para a remuneração dos detentores dos títulos. Uma floresta que não é cuidada é uma floresta que arde, mas é preciso saber quem - em nome do interesse nacional que diz respeito ao interesse presente e futuro de todos - pode e deve ser incumbido da tarefa de a

A propósito do ordenamento do território, há um setor hoje muito dinâmico no país, o turismo, cujas caraterísticas de estruturação, de organização, de tipo de atividades, de equilíbrios/desequilíbrios territoriais que gera, nos deve exigir muita atenção. Esta semana, passando em Santa Apolónia, vi um grande navio de cruzeiro turístico a terminar a acostagem. Ao mesmo tempo, alinhavam-se num parque de estacionamento em frente dezenas e dezenas de tuk-tuks, aguardando a saída de turistas.

Será consensual valorizar o contributo que o turismo tem dado ao crescimento económico e às contas públicas, mas para saber quem e em que dimensão beneficia dele e para evitar desastres futuros, analise-se com rigor: Que turismo temos e poderemos ter? Que perfis de trabalho e emprego estão a ser criados? Quem são os novos proprietários dos edifícios que vemos em recuperação em Lisboa? Que atividades e setores estão a ser puxados por este?

Se o rendimento gerado pelo turismo não for visto como oportunidade para investir noutros setores, diversificando a economia, o emprego criado continuará a ser, em geral, de baixos salários e com fracas condições de trabalho. A "monocultura turística" pode criar desequilíbrios territoriais e setoriais, como já se vê no imobiliário e é muito vulnerável a choques externos.

A qualidade do debate público exige responsabilidade política, clarificação de consensos e dissensos.

* INVESTIGADOR E PROFESSOR UNIVERSITÁRIO