Artigo:Esbarranço, Domingos Lopes in Público de 14/09/2017

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Esbarranço

Bastou a constituição de um Governo diferente nos seus apoios para entrarem numa histeria apocalíptica com medo que as coisas mudem.

Depois do colapso da URSS tornou-se dominante um pensamento único que se alicerça no que se chamou de fim da História e do triunfo do liberalismo na sua nova versão adaptada à globalização. A própria União Europeia deixou cair a coesão social e abraçou a austeridade como programa político.

Podia lá ser, gritavam. Irão bater no paredão da realidade, acrescentavam. Como se a realidade existente na Grécia resultante das eleições e de um referendo passasse a ser um devaneio de um povo, berço da civilização, país bem mais antigo que alguns dos que hoje capitaneiam a UE. Aquela realidade era a saída da vontade soberana e democrática da população grega. Mas não se adaptava à realidade dos ideólogos da austeridade.

Os sacerdotes do Deus único, o mercado, classificam todos os que não seguirem de olhos vendados o bezerro de oiro de padecerem de visões ideológicas irrealistas. Pretendem eternizar esta realidade de empobrecer os pobres e enriquecer os ricos. Juram a pés juntos que não têm ideologia, ao contrário de todos os que pretendem mudar a realidade, esses sim toldados por uma visão ideológica, a de que é possível mudar as coisas, como tem acontecido, pois não vivemos nem no esclavagismo, nem na Idade Média, nem como se vivia há 50 anos.

Para estes ideólogos, Portugal devia continuar a fazer reformas sem fim para o empobrecimento geral do país e enriquecimento dos mais ricos. Como se este objetivo não fosse uma ideologia. Interrompido em parte este ciclo de “reformas” lideradas por Passos, estão danados por se estar a provar que é possível viver de outro modo, restituindo rendimentos e aumentando, mesmo que poucochinho, os salários, diminuindo os impostos à maioria de população.

Continua a ser dominante, sobretudo nos media, este pensamento único que se traduz na ideia de que o mal advém dos que trabalham, que os poderosos são quem pode fazer progredir os países e os mais pobres só lhes resta “amouchar”, de que trabalhar aos sábados e domingos é absolutamente normal e quiçá um dia deixar de haver esses horríveis direitos alcançados porque algures numa ilha todos trabalham todos os dias e têm como contrapartida o sustento. E que se houver uma greve na Volkswagen aqui d’el rei que não se pode irritar uma multinacional. Como se pode falar de direitos face a uma multinacional, ainda por cima alemã? E é esta ideologia que os seus ideólogos não têm coragem de assumir e escondem-na atrás do biombo que designam como realidade.

A realidade encerra várias realidades. Uma delas é a que tem a ver com os que nela vivem. Uns, uma ínfima minoria, os que dela retiram biliões, e outros, a maioria, à custa do trabalho, os seus rendimentos, sendo que para muitos esses rendimentos ficam no limiar da pobreza. Sim, em Portugal um quarto da população vive no limiar da pobreza.

A que é dominante quer continuar a manter o seu domínio. E proclama aos quatro ventos que as tentativas de a alterar esbarram nessa mesma realidade, como se ela fosse eterna e nos fizesse regressar à eternidade do poder desejada pelos faraós egípcios ou pelos imperadores romanos ou pelos esclavagistas...

Quando Cavaco se posiciona, no que chamam Universidade de Verão da PSD, a arengar que os que pretendem um outro modo de vida esbarram na realidade, nada mais faz de diferente do que fez o império romano face ao cristianismo, tendo em conta as circunstâncias históricas, ou o que a inquisição fez a Galileu...

Estes ideólogos disfarçados de “realistas” esbarram estrondosamente na sua ideologia neoliberal ao tentar impô-la como única, quando na verdade há outras a espreitar. Bastou a constituição de um Governo diferente nos seus apoios para entrarem numa histeria apocalíptica com medo que as coisas mudem.

Ficaram excitados com os pios de um dos seus ideólogos, embora muito requentado. E piam. Piam. Estão a esbarrar na geringonça com medo que ela se aguente.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico